26.7.12

causa mortis

O bilhete foi encontrado pelo legista às 01h42 da manhã, dobrado no bolso da frente da camisa amarrotada e úmida de suor do homem morto. Era uma folha pautada com dobras rasgadas e manchada em vários pontos, mas escrita em uma caligrafia sóbria (e ironicamente alegre), em caneta azul esferográfica, com pernas compridas nos gês e jotas e sem pingo nos is.
Dizia:

"Esse é meu adeus. Eu sei que o tempo, corredeira veloz, passa por mim, que sempre fui barranco lamacento, arrancando as ultimas raízes e arbustos frutíferos que seguravam as margens da minha existência.
Em breve serei despedaçado, levado em partes ao oceano, onde minha memória estará perdida para sempre. Sinto isso nos meus ossos, na minha pele e na minha alma. Mas antes que tudo acabe, quero dizer que esse rio implacável, tal como meu espirito, tem o mesmo fim, afinal. Minha sina sempre foi desaguar no mar. Eu, que sempre me achei "terra firme", me dissolvi na inevitabilidade implacável. E, mesmo jovem, conhecerei o infinito, onde o azul de cima toca o azul de baixo, e a Terra, redonda ou quadrada, perde seu horizonte e se funde em um único tom absoluto. Ainda que jovem, cansei de ser barranco duro e cheio de certezas. Quero a paz do azul e a profundidade negra com seus mistérios. Quero me perder na liberdade de ser uma pequena partícula, um quase nada na imensidão de todas as verdades que talvez nunca entenderei. Então digo a todos que amei, que tomaram minhas frutas e pescaram sobre meu colo, todos que choveram sobre meus galhos tortos e me confessaram segredos de amantes nas madrugadas, que levarei vocês comigo, onde eu for. A terra não se esquece, e o oceano é grande o suficiente, mesmo para tanto amor, que talvez eu nunca tenha pagado com a merecida gratidão. Sem maiores analogias cansativas, guardo essa carta junto ao peito, onde sempre carreguei o mundo inteiro."

Diz o relato da perícia que o corpo foi encontrado, já sem vida, no tablado de uma pista de dança. Testemunhas disseram que o rapaz embalava uma música atrás da outra, ainda que não encontrasse um par para acompanha-lo. Alguns reportaram a tentativa de para-lo em seu frenesi maníaco, sem sucesso. Um amigo ofereceu uma garrafa de cerveja. Uma paixão da infância tentou distrai-lo com promessas. Foram chamados seguranças e todos os outros pararam de dançar, relatam, quando começou sua música preferida. Ele morreu no meio de um giro louco, de um grito rouco, de um passo em falso, nos braços daquela que conduzia, apaixonado.
A causa mortis foi revelada poucas horas depois, mas não era necessário ser perito pra constatar o que toda festa já sabia ao vê-lo rodar e pular, transpirando e sorrindo num sorriso doído perto do fim. O rapaz, descontroladamente feliz e certo de todas suas decisões, morrera do coração.

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