Eu não tenho carro. Até sei dirigir, coisa que aprendi com observação, não com prática, porque sou muito sistemático para aceitar infringir as regras de transito e brincar de burguês aqui pelas ruas de Guarulhos. E o fato de eu não ter carro (nem carteira de motorista) leva a uma consequencia inevitável: Tenho de usar transporte público.
E só quem usa o sistema urbano de transporte para cruzar os quatro diferentes pontos cardiais da maior metrópole sulamericana sabe o que é. Se encontra gente de todo tipo. Gente que, inclusive, nem parece gente.
Já ví uma senhora obesa ser expulsa do ônibus sob protestos do cobrador, diante de uma delegacia de polícia, por estar fumando maconha, esparramada no banco traseiro. Já recebi ameças de morte porque esbarrei em um rapaz depois de uma freada brusca de metrô. Já caí no vão do trem, na estação da Luz, por estar desatento ao fato de que quem está na porta será, necessariamente, empurrado de maneira abrupta para fora do vagão. Meus pés vacilaram, e eu fiquei entalado graças a minha robusta caixa toráxica.
Não só de experiências consiste minha observação, mas também de detalhes singelos, de olhares, toques e sorrisos. Ví paqueras frustradas. Ví gestos de cumplicidade silenciosa. Ví arrogancia, ao se irritar por dividir o mesmo espaço com tanta gente feia e suja. Nesses tipos de lugares, vemos o melhor e o pior do ser humano.
O que me faz acreditar que, se Jesus tivesse nascido em torno da década de 80, provavelmente estaria nesse exato momento pegando a linha vermelha, sentido Corinthians-Itaquera.
Mas não estou falando de divindades. Essa nunca foi a intenção desse blog. Quero falar do oposto, de nós, a humanidade: O que nos diferencia dos seres espirituais não é a capacidade de se santificar ou realizar atos mágicos (Pergunte ao David Copperfield). A questão é que não somos estáveis. Pelo menos partindo do nosso próprio ponto de vista instável e imprevisível. Em contrapartida, Deus é bom, e essa criatura rastejante que possui mais nomes que uma ligação química, é má. Não há mudança nesse comportamento, nem nunca haverá.
O problema é que somos fanáticos e reacionários. Até o mais libertino dos homens projeta Deus e o diabo em seus próximos, ensinando tal e qual é a verdade entre o bem e o mal, conforme sua própria opinião (instável e imprevisível). Até aquele que prega que o bem e o mal não existe, ou que ambos são forças energéticas que devem ser balanceadas através de alguma técnica espiritualística maluca se encaixa nessa descrição.
E todos pegarão algum tipo de transporte público uma vez na vida.
O que dá o gancho para meu ponto inicial: O bem e o mal não nos cercam. Esses que estão em nossa volta são apenas pessoas.
Aquele senhor de idade que meteu o dedo no meu rosto hoje, me culpando por ser jovem, é um ótimo exemplo disso. Naquele instante eu era o diabo para ele. Representava todo o mal que uma sociedade que não respeita seus anciãos é capaz de produzir. E eu estava sendo acusado como vilão, pois as placas de sinalização dos ônibus não são nítidas o suficiente para idosos com vistas cansadas.
E ele, para mim, também era o diabo. Exigiu que eu saísse do meu lugar, que não era reservado para idosos, por pura implicancia, uma vez que haviam lugares vagos para ele se sentar confortavelmente. Eu era a vítima de um ser impuro e cheio de maldade.
Então foi embora antes de se sentar no lugar que acabei cedendo. Ele leu a placa perfeitamente, deu o sinal, e entrou reclamando com o motorista por ter parado alguns metros à frente do ponto "correto".
Temos confiança na exatidão de nossa justiça. Temos muitas respostas do que é o correto e o que não é. O que é o bom, e o que é o mal. Temos muitos argumentos. E os preconceitos não são nada mais do que certezas. Toda a maldade cometida por homens instáveis e imprevisíveis vieram de conclusões absolutas.
Em contrapartida, toda bondade manifesta por homens igualmente instáveis e imprevisíveis derivam de uma mesma pergunta:
"e se eu estiver errado?"
"e se isso puder ser mudado?"
"e se ela realmente for o amor da minha vida?"
"e se existir algo além disso?"
"e se eu deixar o leite condensar?".
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