30.7.10
in - out
Em câmera lenta a máscara foi caindo do meu rosto. Centímetro por centímetro, em direção ao chão, bem devagar. Descreveu círculos no ar, mostrando em todos os ângulos os detalhes faciais, pintados à mão com cuidado. Refletiu no espelho toda delicadeza da porcelana, rebatendo um facho de luz incidente, colorida e ofuscante. Por um milésimo de segundo formou as cores do arco íris contra os grãos de poeira na penumbra do quarto, e então desviou, continuando a cair.
Ví o fundo oco e rústico da máscara. A parte de dentro não era bonita como a de fora, nem era confortável. Tinha uma cor opaca, um cinza chumbo, que de alguma forma me lembrava de guarda-chuvas numa tarde nublada. Lembrava escritórios de contabilidade e máquinas de produção de peças metálicas para outras máquinas que fabricavam cabos de guarda-chuva. Me lembrava ferro, sufoco e trabalho. Me lembrava de grades. Jaulas, gaiolas e prisões.
Continuou rodando, e a porcelana trincada olhou para mim. Os olhos vazios fitaram o teto do meu quarto e então me encararam, questionadores. Eram olhos sem alma. Tinha sombrancelhas franzidas, criticando o mundo, e julgando a todos. Apesar da beleza artificial das pinceladas sutis, era dura, forte e inquisidora. De maxilar largo e comprimido, como se estivesse de dentes serrados de raiva, com lábios finos e marcas de sombras que escureciam as maçãs do rosto.
Tocou o solo. A porcelana se vergou sob o próprio peso, rachou e se partiu, espalhando lascas rodopiantes para todos os lados. Laterais, chão, móveis. Alguns quicaram, outros acertaram minhas pernas, e me cortaram superficialmente. Outros atingiram o espelho, que não balançou nem trincou. A máscara se espalhou pelo chão, como um quebra-cabeças desmontado, com peças irregulares e cortantes.
O tempo correu, ergui a cabeça e toquei em meu rosto. Rocei a ponta dos dedos na barba por fazer, num rec rec ritmado, e me ví, de forma perfeitamente falha, em minha forma exatamente real. Ví cada cicatriz no meu dorso e face nus, ví meu nariz torto de tanto lutar contra inimigos que eu mesmo havia criado, e meus olhos vermelhos de segurar o choro, vermelhos de raiva e de angústia. Ví minha expressão insegura e ví o medo no meu semblante. Ví minha pouca estatura, meu rosto infantil e minha evidente fraqueza emocional e moral. Ajustei minha postura. Erguí os ombros, e sorrindo, caminhei para longe do espelho, descalço, sobre os cacos de porcelana perfurante. Andando resoluto, sentindo cada pontada de dor e deixando pegadas de sangue pelo caminho, abandonei o quarto na penumbra.
Lembrei de meu filme favorito. Erguí os braços e disse: - Deixe que o mundo lá fora leia minha mente. - E acrescentei: - Já não tenho medo de ser fraco.
A porta se fechou, o resto aconteceu numa profusão de imagens em fast forward: O quarto implodiu, fechando como se amassa uma folha de papel, como se um buraco negro estivesse sugando tudo para dentro de sí. Cacos, cama, cômoda, tacos do assoalho, teto e por fim o espelho. Num silêncio rasgante tudo fechou, dobrando para dentro, quebrando, explodindo e estilhaçando.
E por fim só restou o branco, esperando para ser escrito.
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Cada vez que passo por aqui tem um texto melhor.
ResponderExcluirLindo, profundo e forte.
"E por fim só restou o branco, esperando para ser escrito." E vai ficar assim até eu sair do meu estado de admiração e escrever um comentário tão coerente quanto o texto.
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