2.7.10

Nossas pequenas ditaduras


Existia uma bola engraçada pendurada na frente de um pano de fundo de estrelas.
Nessa bola moravam pessoas, que eram presas pelos pés de alguma forma igualmente engraçada. E elas se odiavam.
Quando eu digo ódio, quero dizer ódio mesmo. Daquele tipo que você usa coisas que cortam, coisas que atiram, coisas que trituram e coisas que esmagam no outro.
Elas assim faziam porque estavam em busca de um item raro e muito cobiçado, um artefato mágico de poderes incríveis, que tornaria a pessoa que o possuísse quase um deus adorado por toda a extensão daquela bola desengonçada e pequena, em comparação ao resto do universo: a grande, maravilhosa e complexa Toda a Verdade.
Eles matavam uns aos outros, afim de se tornar esse que segundo as grandes profecias locais se chamaria "O Portador de Toda a Verdade" (atitude que, se você parar pra pensar, é bem ilógica).
E no meio de grandes guerras, surgiram pequenos e estúpidos líderes. O fato deles se acharem grandes e sábios será totalmente ignorado por esse que vos escreve.
O primeiro foi um sujeito grande, musculoso e peludo, que usava na cabeça um chapéu com chifres de antílopes. Ele assim fazia porque dizia que se tornava temível diante dos seus inimigos, todos fracotes. Ele dizia que Toda a Verdade se escondia dentro do crânio mais duro do mais bravo touro do mais hostil país. Então com sua força, machados (e pelos) invadia aldeias, saqueava, estuprava, brincava de amarelinha e esquartejava, buscando se tornar O Portador de Toda a Verdade. Seu reino foi temível, e rejeitava todos que não portavam armas (ou que não tinham pelos), por dizer que tais homens fracos nem mereciam ter nascido. "O verdadeiro valor de um homem", dizia, "está em seus músculos".
Acabou morrendo engasgado com um osso de galinha.
O segundo, conforme a crença corrente, não nasceu de parto normal. Foi chocado dentro de um ovo de ouro, num ninho de papéis retangulares verdes. Quando era apenas uma pequena cobra, quer dizer, criança, fora alimentado com moedas, e chegou à idade adulta como um saudável presidente de uma empresa multi-nacional. Seu papai que a fundara.
E se havia uma coisa que esse cobra, quer dizer, homem, acreditava, era que o dinheiro comprava tudo. Inclusive Toda a Verdade. Por isso mesmo resolveu escravizar todos os outros homens, não só para que ninguém, exceto ele, atingisse a quantia necessária pra comprar o artefato, mas também porque odiava quem não tinha tanto dinheiro quanto ele mesmo (isso é, todo os outros). Dizia que "somente quem não é vagabundo prospera".
Morreu engasgado pelo próprio veneno. Literalmente. É que mordeu a língua.
A terceira, a bela, diziam que foi uma escultura dos deuses, dada de presente para viver entre os mortais. Tinha olhos de cristais, um nariz arrebitado que meu deus! Quando sorria todos os 32 dentes de marfim claro pareciam teclas de piano, e acreditava que Toda a Verdade se escondia num estojo de maquiagens igualmente divino.
Essa não precisou fazer força para subir ao poder. Foi galgando lentamente as escadas do sucesso, com suas pernas bonitas. Odiava os feios, tanto que decretou uma lei em que a feiura, fosse de nascença, de doença ou de escolha própria, seria punível com exclusão de direitos básicos, como o direito pelo casamento, de desfilar em palcos de moda ou ser feliz. "Todos os feios são também preguiçosos, burros e ignorantes", falava enquanto sorria, tolerantemente.
Felizmente, a musa morreu ainda jovem, porque como ela mesmo dizia, poderia suportar tudo, menos verrugas.
O quarto era um sorridente palhaço que resolveu sair de seu circo após um traumatizante acidente com a jaula de felinos, duas crianças, um trapezista, um ioiô flamejante e 32 tortas de limão. Tomou o mundo como seu picadeiro. As pessoas aplaudiam o gênio do humor e da felicidade. E ele, se dizendo portador da bondade, dizia: "Todos podem ser felizes!" e logo, gritava "Todos devem ser felizes!" e ao ver que o ouviam, continuava "Porque aquele que não é feliz só quer atenção! A felicidade está ao alcance de quem quiser!".
Na verdade, ele achava que Toda a Verdade se materializaria quando todo mundo desse uma alta gargalhada, em uníssono, por alguma piada sem sentido. E de tanto contar piadas sem sentido o colocaram na política. Sua primeira decisão foi pintar todos os depressivos, infelizes e melancólicos da cidade de rosa, para que passeassem pelados na praça central, como uma grande piada que eram.
Morreu de um ataque de riso, seguido de um ataque cardíaco.
Então todos os feios, fracos, pobres, velhos, tristes, angustiados e desanimados se reuniram, excluídos, em uma comunidade afastada. Dividiam o que tinham, partilhavam suas dores e tentavam se aturar em suas diferenças. No meio desse povo nasceu Toda a Verdade, que no final das contas era uma pessoa. E Toda a Verdade foi seu líder, o primeiro homem bom que aquele planeta engraçado pendurado num universo de estrelas pálidas viu em toda sua existência.
Mas ninguém poderia tê-lo. Só imitá-lo.

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