12.9.10

O segredo dos mártires

Foram só alguns acordes, de uma música que nem me recordo no momento, mas que ativaram alguma coisa nessa pilha de memórias empoeiradas que ficam em alguma estante trancada atrás de uma porta com uma placa escrito "entrada proibida", de minhas lembranças esquecidas. A poeira subiu como uma nuvem e um livro foi aberto.
Lí um trecho de minha vida mais fanática e reacionária. Quando eu acreditava que tudo eram sinais e confirmações. Quando eu me trancava horas em meu quarto num esforço sufocante de agradar um deus vingador, sério e exigente. Quando eu, armado de toda ideologia teológica, atacava, irado, demônios em amigos e parentes.
Folheei algumas páginas, e lí outro trecho que narrava uma série de decepções que tive. Parágrafo por parágrafo, experiências de amargura e frustrações. Ideologias que antes eu abraçava agora me atacavam. E o monstro que criei, com cuidado e carinho, ao tomar a fase adulta, me perseguia sem clemência.
Irritado, pulei um grande trecho e comecei a leitura novamente. Agora eu estava revoltado, atacando novamente, não mais com ideologias teológicas: com mãos nuas. Esse era meu revide contra o mundo que eu defendí com tanto carinho, mas que havia se voltado contra mim. Era meu próprio contra-ataque. Eu ví minha vingança venenosa nas veias saltadas do pescoço, nos olhos serrados e nas lágrimas contidas. Eu cheirava a suor, sangue e lágrimas.



Interrompi a leitura, porque a música invadiu o ambiente. Sim, a mesma que havia destrancado a porta com o "entrada proibida", e me feito folhear o primeiro livro.
Então reparei, atento na leitura, que sempre atacara ao me sentir vitimizado por uma situação. Era o direito de reagir e demonstrar poder de uma maneira punitiva, julgando que minhas vítimas e quem me observava haveria de concordar com o ataque, por ser "justo". Era minha fatia do bolo. Meu momento. A prova do meu poder.
E pensando bem, não é assim que todos amargurados do mundo, infelizes por carregarem ideias de ódio e vingança, fazem? Não é sobre isso que se baseia o grito de "justiça" carregando placas na frente das delegacias? Não é esse, acima de todos, os estopins das guerras? Não é assim que pensa o velho coronel que baleia o rapaz que se aproximou de seu carro? Não é sobre isso que se sustenta nosso atual sistema penitenciário? Não é assim que foram criadas todas essas ideologias radicais, o feminismo, o ateísmo fanático, o taliban? Não é contra esse sentimento, acima de tudo, que Cristo pregou?
Ainda sob a harmonia da musica e espantado, consultei todas as páginas na extensão do livro, e descobrí que havia esse elemento, Cristo, na leitura, que não podia ser atacado e que nunca me atacou. Ele não exigia horas de oração nem leituras pesadas. Ele não acrescentou mais peso quando o mundo se voltou contra mim. Nem mesmo ajudou em meu ataque irado. Eu reparei que esse elemento invisível sempre estivera lá, nas notas de cabeçalho e rodapé, imutável e constante.
Me dispus a ser atacado, então. Esse, eu creio, é o segredo dos mártires. É por isso que sorriem quando, injustiçados, foram apedrejados até a morte. É esse amor extremista, irracional, intolerante, que pode combater todo o mal causado pela "justiça" humana.
Sabendo disso, fechei meu livro. Espanei a poeira e o guardei para consulta, em algum lugar à altura da mão. Tirei a placa da porta e saí para a luz do dia, que não é seguro, e que nunca foi.

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