29.9.10

Microconto #6

A dinâmica da escrita é, para mim, como dar a luz. Concebida por uma ideia, é lentamente gerada, e nasce com vida própria.

23.9.10

Microconto #5

Era um monte bem alto de palavras empilhadas. Ele puxou "amor" e o resto caiu sobre sua cabeça.

22.9.10

A morada das nuvens


Existe uma estrada onde toda alma chega, algum dia. É uma parte seca e vazia do mundo, no meio de uma terra ruim de plantar o que quer que se plante. Lá, pássaros não cantam, não existem doninhas nem raposas cruzando o caminho. Você não verá a chuva ou carros de passagem, frutas em arbustos ou fontes que jorram água. Nem apanhará raios de sol dourados, pois lá é a morada das nuvens.
No meio dessa estrada há uma bifurcação. É onde acontecem as despedidas. Até lá caminham, de mãos dadas, conhecidos e colegas (porque o preço do tempo é a partida), nossas convicções e certezas (pois a mudança de espaço exige mudança de mente), amigos, inimigos, amantes e amores. Para lá caminham todas as almas que se arrastam sob esse lugar cinza e abafado, cheirando a suor e cansaço.
Essa bifurcação nos divide, e o pensamento nos sobrecarrega de culpa, por saber que parte do que somos deve partir e nunca mais voltar.
E é diante dessa bifurcação que chegamos. Ao fim de uma longa e seca estrada, é chegada a hora da escolha: Tornar-nos maduros. É necessário aprender o que ouvir, com quem repartir, a quem dar valor. É necessário aprender a viver. A fantasia não sustenta o sonho concreto, e tudo o que é temporão deve pegar o caminho até o buraco do vazio. É necessário deixar que o mais fácil, o mais covarde e o mais frágil morram soterrados pelo peso do alicerce da responsabilidade. Que essa parte de nós, mesquinha e ignorante(e mesmo assim doce), vá embora, pois o caminho estreito não aceita acompanhantes. A vitória não aceita divisão em sua glória.
As mãos se soltam lentamente com um sentimento de pesar. Não há despedidas. O nosso mais frágil caminha para o fim, e a estrada agora se ergue à nossa frente, ameaçadora. Não mais nossa, quero dizer, porque já não estamos: simplesmente está. O homem crescido está sozinho para caminhar, passo a passo, para seu próprio futuro, que dessa vez não será construído em conjunto, mas por só um par de mãos. "Senhor dos meus passos", sorrí ao murmurar, e apesar da dor da partida, sabe que será bem melhor até a próxima bifurcação, onde a estrada há de se dividir novamente e mais escolhas serão feitas, e mais um pouco dele morrerá, até a perfeição.

19.9.10

Monstro-orquídea.

Ele vem subindo pelo tronco como uma orquídea, uma flor parasita de rara beleza.
Se agarra à madeira, à parede, com tanta força que o nó de seus dedos imaginários empalidece.
Exige, beirando a fúria, a atenção de seu dono, esse coração tolo. A carência sedenta pede atenção de quem passa. Quer seu nome brilhando lilás nos neons da cidade das emoções, que grita: Esse perserverante, notívago e instável monstro bonito quer mais calor!
E quer saber?
Para mim, sempre será bem vindo. Tem um lugar à mesa e uma menção honrosa num livro que ainda será escrito, a respeito de como foi derrubado por uma mão macia de unhas pintadas de salmão.
Mas até que seja posto ao chão, o monstro é meu, come em meu prato, rí das minhas piadas, e é companhia contra esse monstro maior, a solidão escura e fria que fica lá fora, sulgando tudo num vórtice para o vazio.
E ele é engraçado, porque sabe que será derrotado. Me sorrí com esse sorriso quente e totalmente estúpido, como sua essência, e diz que a próxima mão a o derrubar será ainda mais delicada que a anterior. E não sei se é uma ironia, porque nos meus registros, minhas marcas e paredes, ele sempre se ergue mais forte e risonho.
Como essa flor estúpida e rara, que cresce em pântanos e que me faz rir com o sarcarsmo.
Então eu digo: -Sim, eu sei que a próxima mão será ainda mais macia e bonita que a anterior. Ela terá unhas de salmão e perfume de baunilha.

17.9.10

Microconto #4

Descobriu que o segredo para manter-se apaixonável é manter-se constantemente apaixonado.

14.9.10

Microconto #2

Viveu a vida provando para todo mundo que estava certo, até que, certo do que fazia, pulou de um prédio porque não lhe restava vida.

12.9.10

O segredo dos mártires

Foram só alguns acordes, de uma música que nem me recordo no momento, mas que ativaram alguma coisa nessa pilha de memórias empoeiradas que ficam em alguma estante trancada atrás de uma porta com uma placa escrito "entrada proibida", de minhas lembranças esquecidas. A poeira subiu como uma nuvem e um livro foi aberto.
Lí um trecho de minha vida mais fanática e reacionária. Quando eu acreditava que tudo eram sinais e confirmações. Quando eu me trancava horas em meu quarto num esforço sufocante de agradar um deus vingador, sério e exigente. Quando eu, armado de toda ideologia teológica, atacava, irado, demônios em amigos e parentes.
Folheei algumas páginas, e lí outro trecho que narrava uma série de decepções que tive. Parágrafo por parágrafo, experiências de amargura e frustrações. Ideologias que antes eu abraçava agora me atacavam. E o monstro que criei, com cuidado e carinho, ao tomar a fase adulta, me perseguia sem clemência.
Irritado, pulei um grande trecho e comecei a leitura novamente. Agora eu estava revoltado, atacando novamente, não mais com ideologias teológicas: com mãos nuas. Esse era meu revide contra o mundo que eu defendí com tanto carinho, mas que havia se voltado contra mim. Era meu próprio contra-ataque. Eu ví minha vingança venenosa nas veias saltadas do pescoço, nos olhos serrados e nas lágrimas contidas. Eu cheirava a suor, sangue e lágrimas.



Interrompi a leitura, porque a música invadiu o ambiente. Sim, a mesma que havia destrancado a porta com o "entrada proibida", e me feito folhear o primeiro livro.
Então reparei, atento na leitura, que sempre atacara ao me sentir vitimizado por uma situação. Era o direito de reagir e demonstrar poder de uma maneira punitiva, julgando que minhas vítimas e quem me observava haveria de concordar com o ataque, por ser "justo". Era minha fatia do bolo. Meu momento. A prova do meu poder.
E pensando bem, não é assim que todos amargurados do mundo, infelizes por carregarem ideias de ódio e vingança, fazem? Não é sobre isso que se baseia o grito de "justiça" carregando placas na frente das delegacias? Não é esse, acima de todos, os estopins das guerras? Não é assim que pensa o velho coronel que baleia o rapaz que se aproximou de seu carro? Não é sobre isso que se sustenta nosso atual sistema penitenciário? Não é assim que foram criadas todas essas ideologias radicais, o feminismo, o ateísmo fanático, o taliban? Não é contra esse sentimento, acima de tudo, que Cristo pregou?
Ainda sob a harmonia da musica e espantado, consultei todas as páginas na extensão do livro, e descobrí que havia esse elemento, Cristo, na leitura, que não podia ser atacado e que nunca me atacou. Ele não exigia horas de oração nem leituras pesadas. Ele não acrescentou mais peso quando o mundo se voltou contra mim. Nem mesmo ajudou em meu ataque irado. Eu reparei que esse elemento invisível sempre estivera lá, nas notas de cabeçalho e rodapé, imutável e constante.
Me dispus a ser atacado, então. Esse, eu creio, é o segredo dos mártires. É por isso que sorriem quando, injustiçados, foram apedrejados até a morte. É esse amor extremista, irracional, intolerante, que pode combater todo o mal causado pela "justiça" humana.
Sabendo disso, fechei meu livro. Espanei a poeira e o guardei para consulta, em algum lugar à altura da mão. Tirei a placa da porta e saí para a luz do dia, que não é seguro, e que nunca foi.