5.12.12

Bilhete

Fui assistir um filme de romance, e ouvi que não vendo meus sonhos. Que ironia pensar que, por desejar você, eu venderia todos eles.
Eu me tornaria o executivo magnata, o grande publicitário coxinha. Eu viveria à base de cafeína, ditando o que é bom e ruim. Saberia de quem puxar o saco, e como fingir que meu trabalho é o melhor do mundo.
Para ter seus olhos esparramados sobre a cama, seu apetite no jantar ou seu passo miúdo ao correr para me abraçar, eu aprenderia a mentir, dançaria uma valsa com a morte, entraria num duelo contra um furacão, desafiaria o demônio em um jogo de charadas e jogaria todos meus valores e virtudes do alto de qualquer penhasco sem graça.
Eu me tornaria o tal canalha que você finge não amar.
E eu escutei o clique das luzes acendendo, o público se movendo para sair da sala. Estirado sobre a poltrona do cinema, sozinho com a perna apoiada em qualquer canto, acabando com uma pipoca doce, olho para a poltrona vazia do meu lado. Te chamo pelo nome nenhum e te beijo em minha cabeça.
E penso que, se quando chegar você me perguntar como aguardei tanto, como foi esperar sua aparição, já que eu digo te amar desde sempre, talvez nada que eu diga a faça entender que sempre esteve lá.
Mas não se engane, você nunca teve um rosto; você não é sequer uma ideia, é muito real para que eu faça um retrato. Meu desenho embota na mente, minha definição perfeita se esgota, as palavras caem naquele vão entre o papel e o lápis, e o filme enrola e chega no final. Se você existe, eu nunca desconfiei, e se não existe, eu não paro de acreditar.
A voz do lanterninha me acorda, e eu te gravo na memória, como quem não tem mais contra o que lutar. Ele me aponta a saída, mas eu discuto se não há outra forma, se podemos negociar. Ele diz que não, que se eu quero ver o filme, tenho que sair e pagar, que os valores precisam ser entregues no penhasco sem graça. Que eu tenho um demônio para desafiar.
E tudo fica bem. Pode ser que você não exista. E ainda sem me dar uma só pista, eu penso no preço a pagar...

2.11.12

Desista

Desiste disso. Você não é o profissional que queria ser. O amante que queria ser. O sábio que queria ser. Você está cansado de seus rótulos e disso que as pessoas dizem sobre ser feliz. Você simplesmente não se encaixa em lógica nenhuma, mas é julgado por todos, e tem que carregar esse peso, essa marca miserável nas costas por não poder fazer nada sem que alguém diga algo sobre seu caráter. Porque você é muito pesado. Porque você é muito carente. Muito ácido. "Muito alternativo". Porque você não sabe ouvir um não. Não sabe nem se alegrar com um sim.
Aliás, quem é você?
Todo mundo parece saber. Menos você mesmo.
Vai continuar usando essa máscara de pele ou vai entrar pro baile? A valsa já começou e toda a humanidade já pegou seus pares. Só você, claro, que não. Você tinha que ficar de fora, criatura pequena, engraçada e mesquinha. Desiste disso de tentar ser você mesmo. Apenas seja qualquer outra coisa, um padrão na parede ou um pedaço de máquina. Somente seja você mesmo, desde que ser você mesmo seja aquilo que todo mundo espera de você.

4.10.12

Quanto?

Quanto vale seu amor?
Ou você não acredita mais nisso? Você acha que amor é apenas biológico, hormônios dançando em uma química irritante, nos dizendo o que fazer para saciar alguma fome invisível? Você já se tornou tão pragmático que guarda no histórico um site pornô, na agenda o telefone de uma garota fácil e no coração a certeza que tudo é descartável, em nome da alegria?
E se, ao contrário, você doa seu amor pra quem não quer (ou não merece)? Você se vê constantemente implorando por atenção, fazendo mais uma concessão, dando mais um passo, cedendo mais um metro, abaixando mais as calças. Tudo para manter o ídolo furioso que é seu ser amado aplacado através de um sacrifício de sangue - o seu sangue. Seus amores são sumidouros de alma?
Você joga com quem quer amar? Coloca a pessoa num labirinto, fazendo-a andar em voltas do prêmio que é você, iludindo-a com sinais falsos e portas secretas, disposta a assusta-la com monstros de fantasia e anjos 
que sussurram promessas, em nome de sua sedução e diversão, independente se o coração tão ardilosamente conquistado continuará um brinquedo interessante (ou não) na manhã seguinte?
Ou você é daqueles que se esconde no medo e faz da baixa auto-estima, do orgulho ferido, dos traumas e da falsa honestidade uma bandeira para afastar para longe quem mais quer por perto? Você vive no pretexto de ser salvo de um mal que você mesmo inventou?
Quanto vale o dom de poder amar?
Quanto vale, para a pessoa, ser amada por você?
Quanto vale a pessoa que você ama?
Quanto vale seu amor?


26.7.12

causa mortis

O bilhete foi encontrado pelo legista às 01h42 da manhã, dobrado no bolso da frente da camisa amarrotada e úmida de suor do homem morto. Era uma folha pautada com dobras rasgadas e manchada em vários pontos, mas escrita em uma caligrafia sóbria (e ironicamente alegre), em caneta azul esferográfica, com pernas compridas nos gês e jotas e sem pingo nos is.
Dizia:

"Esse é meu adeus. Eu sei que o tempo, corredeira veloz, passa por mim, que sempre fui barranco lamacento, arrancando as ultimas raízes e arbustos frutíferos que seguravam as margens da minha existência.
Em breve serei despedaçado, levado em partes ao oceano, onde minha memória estará perdida para sempre. Sinto isso nos meus ossos, na minha pele e na minha alma. Mas antes que tudo acabe, quero dizer que esse rio implacável, tal como meu espirito, tem o mesmo fim, afinal. Minha sina sempre foi desaguar no mar. Eu, que sempre me achei "terra firme", me dissolvi na inevitabilidade implacável. E, mesmo jovem, conhecerei o infinito, onde o azul de cima toca o azul de baixo, e a Terra, redonda ou quadrada, perde seu horizonte e se funde em um único tom absoluto. Ainda que jovem, cansei de ser barranco duro e cheio de certezas. Quero a paz do azul e a profundidade negra com seus mistérios. Quero me perder na liberdade de ser uma pequena partícula, um quase nada na imensidão de todas as verdades que talvez nunca entenderei. Então digo a todos que amei, que tomaram minhas frutas e pescaram sobre meu colo, todos que choveram sobre meus galhos tortos e me confessaram segredos de amantes nas madrugadas, que levarei vocês comigo, onde eu for. A terra não se esquece, e o oceano é grande o suficiente, mesmo para tanto amor, que talvez eu nunca tenha pagado com a merecida gratidão. Sem maiores analogias cansativas, guardo essa carta junto ao peito, onde sempre carreguei o mundo inteiro."

Diz o relato da perícia que o corpo foi encontrado, já sem vida, no tablado de uma pista de dança. Testemunhas disseram que o rapaz embalava uma música atrás da outra, ainda que não encontrasse um par para acompanha-lo. Alguns reportaram a tentativa de para-lo em seu frenesi maníaco, sem sucesso. Um amigo ofereceu uma garrafa de cerveja. Uma paixão da infância tentou distrai-lo com promessas. Foram chamados seguranças e todos os outros pararam de dançar, relatam, quando começou sua música preferida. Ele morreu no meio de um giro louco, de um grito rouco, de um passo em falso, nos braços daquela que conduzia, apaixonado.
A causa mortis foi revelada poucas horas depois, mas não era necessário ser perito pra constatar o que toda festa já sabia ao vê-lo rodar e pular, transpirando e sorrindo num sorriso doído perto do fim. O rapaz, descontroladamente feliz e certo de todas suas decisões, morrera do coração.

12.6.12

Filha de estrelas


Em seu nome tem alegria, garota. E mesmo hoje, quando todos parecem estar sorrindo ao amor e seu gosto é solidão, sorria com essa sua alegria, porque tua solidão é pura. Não foi comprada barata em uma loja de penhores. Você não é uma jóia gasta e riscada, entregue ao tempo e as mazelas de tantos donos.
Você é inteira.
Então, se hoje sente solidão, abrace-a. Ela não está ai como punição aos seus erros, nem quer te castigar. A solidão é teu estado natural. Portanto hoje, beije-se, presenteie-se, ame-se. Saia para passear por um lugar bonito, passe mais tempo consigo mesma.
Mas também aprenda a amar de novo. Sorria para um estranho. Em vez de esperar flores, dê elas para um rapaz bonito. Não espere que o tempo aconteça fora do teu relógio, porque esse apressado não espera ninguém. Vai deixando para trás tudo que te faz sentir pequena, culpada ou feia.
Você é feita da mesma matéria das estrelas. E o que te diferencia das outras é apenas saber disso.
Hoje também é teu dia, garota linda, cheia de esperança, com alegria no nome. Você é namorada de si mesma, e será ainda mais de quem souber achar você, estrela rara no céu nublado.


16.5.12

A oração do super-herói

Deus, dê-me o poder de um super herói; desses que a gente não vê na tela nem na HQ. Não preciso correr mais rápido que um cometa ou erguer com os braços tanques de guerra. Quero fazer a maravilha de sofrer metamorfose. Quero me erguer todo dia de um leito de morte, onde deixo um pouco da casca do casulo, e daí criar asas na mente, até que um dia, voe.
Deus, torne-me indestrutível, para que eu não 
me destrua. Dê-me tal poder para derrotar meu arqui inimigo, o eu, e assim salvar o mundo; o que você me deu. Me faz acordar todo dia maior, mais claro e mais forte, brilhanto mais intenso que a dor que ontem senti.
Dai-me o poder do contágio, Pai. Para que a metamorfose se siga numa corrente de liberdade e bem querer. Faça minha força um prodígio, um milagre, para que eu salve a cidade das almas que amo e lute contra o crime de meu próprio caráter quebrado.
E que por esse poder Você transforme, em igual intensidade, o ódio em gentileza, a impaciência em mansidão, o egoísmo em bondade, a amargura em docilidade, e por fim, a morte em vida. Então não terei mais identidades secretas.
Chamarei Homem-Luz para Você.

13.5.12

Trançando mortalhas

A gente tenta descobrir qual é o segredo da vida.
Porque seu próprio conceito nos foge, na verdade. A gente tenta, o tempo todo, transcender a morte (seja lá qual sentido queira dar a essa, também). A felicidade, o sucesso, os sonhos; tudo isso faz parte da trama de fantasia que criamos, todas tentativas de descoberta, o fim do segredo que falamos, afim de desvendar o silencio do espirito. A vitoria sobre a grande incógnita do fim.
Mas essa busca é dolorosa, pois, quanto maior seu apego pelo que acredita ser capaz de te fazer transcender, tão maior serão suas frustrações ao descobrir que essas fantasias são impossíveis de controlar. A vida (ou seja lá o nome que você der a essa idéia de consecutivos fatos incontroláveis) costuma, numa ironia fina, te tirar das mãos aquilo que você mais deseja no ultimo instante, deixando no paladar da alma apenas a sugestão do aroma doce do sonho nunca provado. A vida costuma nos negar as alegrias que buscamos, como uma velha freira amargurada no internato da existência. Mas, ainda assim, é bela e breve.
Imagino nossas almas nessa tarefa de trançar, lentamente, nossa própria mortalha. Algumas são de padrões belos e sóbrios. Outras, coloridas e cheias de formas extravagantes. Mas ainda existem as confusas, apenas remendos de outras tantas mortalhas que foram desfiadas e tricotadas novamente, com cores desarmonizadas, cheias de costuras e buracos. Essas mal cabem no corpo que cobrem, no fim da linha.
É quando propomos tantas coisas, afirmando com tanta certeza, lutando nossas pequenas batalhas com tanta violência, agredindo, mordendo e matando por um assento livre no ônibus, por um beijo amoroso de um amante fiel, por um brinquedo de papel solto no ar; tentando viver de maneira tão pesada o que, de outra forma, seria tão singelo, que eu acho que perdemos o fio da meada.

http://tinysong.com/129ec

8.4.12

Prateleira do drama

Não tenho mais paciência para filmes ruins, para essa enrolação na trama, esses personagens clichês. Não consigo mais assistir uma história repetida.
Mas de tudo, o que eu mais odeio é a pretensão de todo mundo que assiste à peça e aplaude. O gosto massificado, que virou uma formula de sucesso, virando único padrão de se fazer qualquer coisa. A verdade definitiva. Eu cansei do simulacro, dessa gente que troca o verdadeiro, o real, o sincero, por aquilo que dizem ser normal. Só porque todos fazem dessa forma, ou porque dizem que assim seria o certo.
Cansei dessa gente que esmaga o singelo e o puro em troco de duas horas de ação frenética e sem sentido. Quem não reconhece um bom romance silencioso e que corre logo para a estante do terror, pois só sabe sentir o gosto de sangue. Cansei dessa intensidade fabricada, repetida, revista e recopiada. Os super-heróis inumanos que ganham infinitas reprises de suas vidas patéticas, ideologias rasas e poderes sem sentido.
Porque todo romance precisa ser comédia? Porque todo drama só acontece no Iraque? Porque a mocinha pura e delicada sempre padece na mão de um bonitão malvado antes de virar a mesa e se tornar uma mulher sedutora ou uma assassina vingativa?
Eu não sei porque as pessoas gostam tanto do impossível. Eu não sei porque elas se acomodam tanto com o absurdo. Eu não sei nem se ainda estou falando de filmes.

21.3.12

quer dizer

- eu te amo
- não, você está confundindo tudo
- confundindo? confundindo o que?
- você disse que me ama
- não, é impressão sua, eu fiz uma brincadeira.
- sério?
- sério, você é quase meu brother.
- ah, tá.
- relaxa...
- eu estou relaxada, só que...
- só que o que?
- sei lá, por um momento, pensei que fosse de verdade.
- é mesmo?
- sim.
- que pena, né.
- é...

19.3.12

Varanda

As vezes a gente sai na varanda só pra pensar.
Ver a vida de cima dá uma sensação de distanciamento. Talvez seja o desapego, ou o tamanho que ficam as pessoas ao olhar. Dá pra fantasiar que são insetos, prontos para serem esmagados debaixo de botas pesadas. As mesmas que nos estão esmagando nas baias do escritório.
Dá pra pensar que o longe está perto, e que estamos próximos do céu.
Dá pra sonhar em pular e esperar que alguém nos salve no meio da queda, como fazemos o resto do tempo.
Dá pra ser outra pessoa. Dá pra chorar sem que ninguém veja, e esperar que o vento seque o rosto molhado.
Dá pra ficar em silêncio sem que o azul nos obrigue a dizer algo interessante. Na varanda, não importa se você é engraçado, interessante, divertido, bonito, ou se consegue manter o rumo da conversa. Lá fora, você é apenas um ponto debruçado no prédio alto e frio.
Dá pra conversar consigo mesmo sem ser chamado de louco.
Dá pra descansar nas próprias mentiras.
A varanda é o ponto extremo, um espaço pequeno para lembrar que tudo que você precisa é de um passo. Pra viver ou pra morrer.

3.2.12

Lumière

Toda noite um passarinho vêm me visitar.

Entra pela a janela aberta e me canta uma música bonita, e tudo se torna leve como seu peso sobre meu peito, nas madrugadas de luzes e sons.

Quando desperto e olho pela janela vazia, percebo como sua canção entrou no meu dia. Me pego ansiando pelo momento perfeito, o silêncio que precede a alvorada, quando os passarinhos cantam.

Meu passarinho me fez viver da espera. E nunca foi tão leve esperar.

17.1.12

Paraíso num fio de algodão

A gente vai aprendendo a se desprender.
É como soltar-se aos poucos do medo de que, se a gente soltar o próprio medo, o que importa irá embora. E o medo é o medo do vento forte.
É o medo de que, ao entregarmos aquela pipa bonita ao ar, o estirante vai estourar e só fiapos da seda colorida dançarão no céu de tempestade. A gente tem medo é da perda, do vento que leva embora os sonhos de rabiola, fita e cola.
Há então quem passe o tempo todo olhando para sinais. As folhas de árvores que dançam numa direção, o sentido que cai a água que escorre, a força que as roupas balançam no varal. Tentam até medir o invisível, à dezenas de metros de altura, como quem descobre padrões maiores que eles mesmos. São os meteorologistas de elevador, graduados na teoria da dor.
Gente assim não solta pipa, pois sentem apego pelo medo do vento forte. Desistiram das cores que dançam contra o céu ora cinzento, ora azul profundo. Desistiram da sensação de leve controle sobre o brinquedo frágil, a linha que puxa a pele com delicadeza, o som distante das fitas que chicoteiam o ar. Desistiram do amor por todas essas coisas frágeis, cuja perda é dor maior que se espera.
Só que um dia a gente aprende a se desprender. Mesmo sabando que pode enroscar, que um homem maldoso de cortante e pipa preto dará um rasante e veremos outra peça flutuar para longe, que a chuva pode surgir do nada, reduzindo o papel fino do novo sonho à furos e rasgos. Mesmo sabendo que poderá doer no peito a saudade das cores que voam.
Nós continuaremos dando linha, só para saber quão alto chegaremos.
E quem sabe um dia, contra todas as expectativas de quem acha que conhece o vento, subamos tão alto que achemos o paraíso através de um fino fio de algodão.

3.1.12

Ainda faltam palavras.

Eu queria encontrar palavras que curam.
Elas comporiam a frase de maneira mestral, e com um sucesso quase arcano, mudariam a realidade conforme o contexto do que se diz.
Mas palavras assim não existem.
Existem palavras que ferem, palavras que destroem, palavras que acalmam, palavras que ordenam, palavras que enganam, palavras que prometem. Só não existem palavras que concertam.
Se existissem, eu as diria assim, calmamente, e veria pousar na rede a paz feito passarinho. E eu pousaria a cabeça no colchão feito astronauta. Soletraria todo dia quando na soleira de casa pusesse o pé, e não bastando, a cantaria na rua alto como numa conversa empolgada.
Queria dizer "desculpa", "perdão", "eu sei", "por favor", "eu também", "sabia que", e ao dizer, mudaria o coração do sujeito oculto. Criaria um texto perfeito. Saberia controlar meu coração.
Eu queria construir castelos de letras. Empilhar prosas e erguer um reino. Cansado de adjetivos uniformes, verbos inflexíveis, pronomes impessoais, queria uma palavra que defina, domine e salve. Eu queria dizer o que amor queria dizer.
Mas não existem palavras que curem.