29.6.10

Rápida biografia

Ao nascer, Luiz pensava ser um pepino.
Quando bebê, fingia poder voar.
Cresceu achando que era um pirata.
Na adolescência, namorou a Esfinge.
Se formou com louvor em topografia marciana.
Enriqueceu trabalhando num circo de fadas.
Envelheceu comendo manjares de reis mortos.
Um pouco antes de tudo acabar, reformulou sua vida. Ele disse:
"Antes ter provado de uma só certeza, de um só sabor real, de uma só alegria verdadeira, do que tantos paladares maravilhosos, de cores incriveis e histórias gloriosas de coisas que nunca existiram"
Morreu sobre sua cama, a qual chamava de trono.
E foi escondido na terra, que nunca havia fantasiado nada.

27.6.10

coisas maravilhosas em trechos de improviso

Minha pergunta:
Uma criança pede dinheiro no farol. Ao longe, você vê o pai dela observando, enquanto ela arrecada o dinheiro. O que você pensa disso?

A resposta dela:
Vejo o quanto meus problemas são pequenos perto dos dos outros. Que é utopia uma sociedade justa. Que o homem é egoísta, cruel e insaciável. Mas que Deus não, e nele nada é impossível.
Penso que dando o dinheiro eu contribuiria para que aquela situação se perpetue, mas se não der, posso estar colocando aquela criança em maus bocados.
Penso em tanta coisa. Meus olhos não suportam miséria e violência. E numa cena como essa presenciamos as duas situações. Mas o que são meus olhos, meu horror pela causa, perto do que aquela criança sente na pele? Penso que sou pequena, e o mundo é muito maior do que os meus braços podem carregar.

Trecho de uma conversa quase onírica com um personagem maravilhoso que surgiu no palco da minha vida. Não sei que papel ele vai ter no decorrer da história, mas esse trecho do espetáculo está me causando arrepios.

25.6.10

You could be happy

Hoje eu queria falar sobre ser feliz.
Mas não da forma que todo mundo fala, de como a alegria é complexa e "todo ser humano procura suprir essa necessidade através de grana, plástica, espiritualidade, sucesso profissional, relacionamentos, lazer, reclusão, arte..."
Queria falar de ser feliz.
De abrir a janela e deixar o sol bater nesse quarto frio.
De sorrir enquanto lava a louça.
De falar sozinho.
De rir das próprias desgraças.
De ser simpático num comentário que foi enviado para você no twitter, mesmo sendo você uma pessoa famosinha que acha que todo mundo que envia recados está tentando te zuar.
De ser suave.
Estou falando de levantar da cama, encher o peito, e falar: Hoje vou me alegrar!

O que te impede?
Nada, não é?

O que te impede de perdoar, de deixar as pessoas entrarem e saírem da sua vida, como se fosse uma casa aberta?
O que te impede de ser uma hospedagem para feridos de guerra, em vez de uma propriedade privada?

Ao olhar pro lado, o que faz com que você veja um obstáculo em vez de uma pessoa?

O que te impede de se apaixonar?
De deixar que alguém te vença?
De se deixar derrubar?
O que te impede de tentar novamente, e aceitar seus erros com um sorriso?
O que te impede de dizer: "Sim, a culpa é minha"?

O mundo está muito complicado.
Dizem que a felicidade é muito importante e muito rara para ficar disponível o tempo todo, para todo mundo. Ela é muito grande, muito esquisita, muito complexa. Para protegê-la, colocamos trincas, ferrolhos e cadeados, e a cercamos de muros e valas. E então ficamos seguros, afastando todo mundo de perto.

Só que cada pessoa com que cruzamos tem uma chave. Cada uma é uma escada. Todas elas são pontes.

22.6.10

Comunidade articulada do quarto azul celeste

Um homem ensinou para seus bonecos articulados como é legal que todos vivam em paz e em liberdade. E então, sumiu por um tempo, prometendo voltar em breve.
Falcon do G. I. Joe, valentão, assumiu a liderança. Falou que precisariam de alguém com pulso firme para levar adiante as palavras do dono. E, de preferência, que usasse uma barba cerrada, pois barbas cerradas impõem respeito. Começou a transformar sugestões em regras, as regras em rituais, e de repente, todos que não praticassem a paz da forma que ele achava correta eram acusados de insubordinação, e eram afastados da comunidade articulada do quarto azul celeste.


Spider Man achou um absurdo. Ele gostava de se pendurar em maquetes de arranha-céus, beijar sua Mary Jane Watson articulada em noites de chuva de ponta cabeça, e Falcon dizia que isso ía totalmente contra os padrões de paz. Quem dirá então jogar teia de aranha no rosto dos bandidos da cidade de blocos montáveis! Definitivamnte era contra essa idéia maluca, e então se uniu com todos aqueles bonecos Playmobil indies com cabelo de tigela e calças coloridas, e tentou seguir as palavras do dono de sua própria forma. Eles tocavam numa banda de rock, e Falcon dizia que isso era coisa de pouca paz, provavelmente idéia provinda da cabeça do Spawn, aquele demônio com simbionte e fedendo a enxofre.
O Spawn achava graça, na verdade. Ficava lá sentado em seu trono, sem mover um dedo sequer.
Ken, aquele esposo da Barbie, mauricinho, com sua blusa de trico amarrada num nó em volta do pescoço, também não gostava do método de Falcon. Chamou todos ao redor de seu carro de plástico cópia exata - mas nem tanto - de um Porsche, e falou em alta voz, para que todos ouvissem: "O dono não nos quer tristes, isso é verdade! Liberdade é prazer! Portanto, consigamos tudo o que quisermos, e se possível, me dê parte disso também, porque tenho certeza que como sou do dono um dos brinquedos favoritos, vocês serão recompensados pela generosidade!". Dessa forma, comprou para sua eterna namorada-esposa-ex-esposa-grávida Barbie um salão de cabelereiros, milhares de roupas, um rabo de sereia que brilha quando molhado em água fria, chapinha pra fazer frizo no cabelo, uma mansão, cachorrinho e até mais um filho, de plástico.
Spider Man achava isso desprezível. Talvez porque via que aquelas cópias chinesas de super-heróis da TV, produtos de categoria inferior, o invejavam e doavam até o que não tinham para que fossem parecidos com Ken, dirigindo um Porsche e namorando uma verdadeira boneca. Mais provavelmente, odiava porque também invejava, mas nem reparava nesse detalhe.
Enquanto isso, um dos bonecos playmobil tivera o que julgara ser uma revelação de que deveriam tocar de costas para quem ouvisse, porque como gostavam de agradar seu dono, não deveriam agradar a mais ninguém. Os outros não entenderam muita lógica nessa colocação, e continuaram tocando seu rock, que de birra ficara ainda mais pesado. Começaram a beber, falar palavrões e odiar Boça Nova para mostrar o quanto eram diferentes de seu parente-próximo maluco.
Foi quando se levantou no meio de todos o boneco Gandalf, o cinzento, erguendo bem alto o bastão e gritando: "A única forma de nosso dono voltar é que estejamos unidos!". E tentou mostrar para todos que agindo assim, contribuiriam para a paz. E para a liberdade. Frodo achou aquilo uma bobagem, e foi discutir com Sam novas maneiras de assar batatas.
Todos os outros, no entanto, compraram a idéia. Cada um pensava que entendia a forma perfeita de procurar a paz, e dessa forma, obrigava quem estava próximo a seguir o que faziam. O próximo em questão, além de não ceder, procurava provar que estava certo de sua maneira. Seguiu-se disso uma paz forçada, onde se via Super Man apertando a mão e dando sorrisos amarelos para Naruto, Max Steel tolerando as conversas de Mu de Áries (que ele considerava uma criatura extremamente afetada) e até mesmo o Senhor Cabeça de Batata tentava compreender toda aquela complexidade de Garage Kit de L Lawliet.
A história torna-se dramática a partir desse ponto, mas vou resumí-la: Vendo a bagunça que seus bonecos faziam com o que compreendiam ser "paz" e "liberdade", o dono resolveu voltar e colocar tudo em seu lugar. Desinstitucionalizou as coisas que Falcon tinha administrado com tanto rigor e burocracia; falou para a banda que a música era música, e para ser música basta ser tocada, se gostarem de rock n' roll ou boça nova, quiserem tocar de frente ou de costas, isso era questão de opinião delas, e ele não tinha nada a ver com isso; puxou a orelha do invejoso Peter Park, apesar de dar mó força com seu namoro de ponta-cabeça na chuva; provou para todos que o carro, o penteado, a namorada, o cachorro, a cômoda, a mansão, a piscina, a cama redonda e até o bebê de Ken eram de plástico; e por fim, riu por muito tempo e em alto som sobre aquela idéia ridícula de Gandalf de "união entre brinquedos".
"Tal coisa não existe". Disse. "Para que todos pensem igual, é mais fácil só sobrar um, quebrando todos os outros. A paz e a liberdade não são coisas que se institucionalizem, que se discutam, que se estruturem, ou que se prendam. Por quê, ao invés de tentarem provar que suas idéias estavam certas, vocês não procuraram viver juntos, simplesmente assim?"
Então pegou uma folha de aluminio e foi assar batatas junto com Frodo e Sam, frustrando meio batalhão de anjos articulados que estavam prestes a cantar coisas sobre santidade.

20.6.10

Não existem bandidos. Não existem mocinhos.

Acabei de assistir Unthinkable. Um filme sem patrocínio, sem produtora, sem uma direção brilhante, sem lobby, sem glamour, sem Oscar. Sem porcaria nenhuma.
Por falta de investimento financeiro, foi lançado para apenas 4 países. Para quem é atento em detalhes, fica claro, em diversos trechos do filme, que muita coisa foi cortada da edição final; e talvez seja pelo mesmo motivo.
É um filme visceral, cru, beirando a prepotência de se garantir como único verdadeiro no que se propõe a falar, e expõe exatamente o que não queremos ver.
Sequer estreou no Brasil.
E é, sem dúvidas, um dos melhores suspenses policiais que já assistí.


Site do Up! para download.


A pergunta que fica, pesando na mente de tal forma que parece descer até o estômago de maneira bem desconfortável, é: "até onde você consegue negociar com seus princípios?"
Estou pensando que todos nós nos protegemos alimentando monstros. Precisamos deles para fazer nosso trabalho sujo, para não enlouquecermos. Precisamos de nossos monstros para proteger o sistema de vida que criamos. Para proteger "nosso governo", o próprio, e o público. Se algo nos parece hostil ou perigoso, abrimos a jaula, e quando nossos supostos inimigos são despedaçados, culpamos o monstro por isso.
Afinal, somos tão limpos, bem-vestidos e perfumados.
Somos a sociedade ocidental americana.
Sorria e pouse para a foto, baby. Deixe que o monstro que criamos leve a culpa.

Spoiler:
Quando comentei que achava que tudo poderia ser facilmente resolvido se o governo cedesse para o pedido prático (mesmo que não simples) de Yusef, fui chamado de louco. Falaram que o correto seria levar duas crianças à tortura. "Pelo bem de milhares".
Yusef provou para todos que ouviram que ele estava certo, não existem mocinhos. O filme me provou a mesma coisa, assim que eu desliguei a TV.

19.6.10

Cantamos quando não podemos.

Sentado num banquinho no topo de um barranco eu olhava para um bairro miserável de uma cidade pobre de um país "emergente". Crianças empinavam pipa nas lajes. Galinhas ciscavam no terreno inclinado. Minha amiga conversava com seu Francisco, o dono da casa humilde com curiosa paisagem, cujo único acesso para o que a gente chamaria de porta principal é nada mais que um corredor de um metro de largura, beirado por casa e pelo vazio do galinheiro, a 20 metros abaixo de onde estávamos.
Do fundo do terreno, uma galinha muito feia veio escalando com dificuldade. Parou em nossa frente e começou a se comportar de maneira esquisita. Primeiro pensei que estava engasgando, o que achei curioso. Ela abria o bico como se fosse bocejar. Mas então ví as penas do pescoço ouriçarem, e entendí. Ela estava tentando cantar, como se fosse um galo. Mas sem som. O pássaro horrível e imundo com olhar triste estava lá na minha frente, tentando fazer o que a natureza determinara como impossível para sua estrutura biológica.


- Eu posso ter perdido tudo, mas ganhei o melhor desse mundo. Minha filha está viva. Ela nasceu duas vezes. - Dizia seu Francisco, que agora morava nessa casa emprestada porque perdera tudo o que tinha em um deslizamento recente, quando sua filha mais nova foi resgatada em cima da hora de um destino pior.
Minha amiga está tentando desfazer o que a natureza, agredida pelos homens, reagiu com vingança contra a família de imigrantes nordestinos. Ela está tentando organizar a reconstrução de sua antiga casa.
- Amo muito meus filhos, nunca vou abandoná-los. Fiquei sabendo de um compadre meu que o filho admitiu ser viado, e ele botou o próprio filho para fora de casa. Eu nunca conseguiria fazer isso, vou amar meus filhos até o fim.
Ele estava com a voz embargada, mas não chorava. Mantinha a pose, sentado, sujo, em um banquinho parecido com o meu. Analfabeto, trabalhando como gari e pedreiro para sustentar os 4 membros de sua família. O seu salário só pode ser comparado com algo muito, muito pequeno.
A galinha continuava tentando cantar. Suja e feia, lutando para escalar o barranco gigantesco.
Eu, calado, lutava para entender a dimensão dessa dor. Sujo pela terra batida e seca do calor do local, respirando com dificuldade por culpa de uma queimada próxima, olhava aquele mundo de miséria inculta e descaso. Olhava para a guerra daquele homem pela própria dignidade, mesmo cercado de histórias em que homens desistiram de seus valores, de seus amores e seus tesouros.
Então entendí que somos como aquela galinha: Escancarando bem aberta nossa alma, esperamos pelo milagre de superar nossos barrancos, para cantarmos quando tudo diz que não podemos. Nossa sujeira, nossa feiura, todas nossas impossibilidades são colocadas em cheque por nossa fé ilógica.
E quatro almas imundas cantaram em silêncio, nessa tarde:
Minha mente obscura de tanto ódios, comovida com a simplicidade de um analfabeto amoroso;
a minha amiga, sabendo que algo pode ser feito em favor de quem precisa.
Senhor Francisco, ao reafirmar em plenos pulmões que nada tirará seus verdadeiros tesouros.
E a galinha, cantando inspirada por Deus para me fazer pensar.