24.12.10

O inverso do que se vive. Feliz natal.

Há pessoas que odeiam por odiar.
Haters gonna hate, como dizem.
E há quem odeie o natal, pelo simples motivo que isso se tornou bonito, como é bonito, hoje em dia, odiar tudo que é ideológico e provido de sentido.
Temo que minha geração, a juventude de que faço parte, tenha se tornado uma espécie de massa unificada do blasé e de desprezo, que é, muito mais que o ódio, o inverso do amor.



Hoje, véspera de natal, ví uma jovem quase atropelando um flanelinha na rua. Com seu trapo imundo ele tentava limpar o para-brisas do carro da moça, e como provavelmente não ouviu os apelos para que parasse, quase foi esmagado pelas rodas do gol. Ele saltou de lado assim que ela pisou no acelerador, derrubando o garoto, a flanela e a esperança de conquistar alguns trocados.
Provavelmente essa mesma moça bebeu e comeu bastante hoje a noite. Desejou feliz natal e brindou com seus próximos uma vaga lembrança de um Salvador que morreu pela humanidade.
Mas eu poderia julgar a sinceridade com que a moça comemora a festa com seus iguais? Não. Pois somos todos, sem exceção, extremamente egoístas.
Não é disso que o natal nos fala?
O natal fala de um Deus que viu uma humanidade quebrada e sem rumo, cada um correndo pelo que acha certo em seus propósitos errados para um destino duvidoso. Cada um ouvindo o som de suas próprias dores, defendendo o sonho de curá-las, cada um capaz de destruir quem se botar à frente dessa tentativa de cura forçada. São pessoas de atos mecânicos. De centenas gastas em shoppings. De compras automáticas-obrigatórias. De um Deus que viu uma humanidade capaz de atropelar flanelinhas em faróis se isso a atrasar alguns segundos em sua corrida pelo sentido da vida.
Mas no que somos diferentes dessa garota, afinal de contas?
Corremos um sprint infinito para um abismo de nossos sonhos loucos.
Mas o natal é a celebração do anti-egoísmo. É, por sí só, contra-cultural, apesar de não sabermos ver isso, e muito menos viver isso. É a propagação que ecoa: "Paz na Terra aos homens de boa vontade".
É a poderosa mão estendida na manjedoura da fragilidade.
É a celebração de ofertar sem esperar em troca, de descobrir as vontades de quem amamos, de entender sonhos, de perscrutar corações para, com o sustento do bolso, arrancar sorrisos. Não se trata do presente mais caro, da ceia mais farta, da roupa mais bonita. É a tentativa de, uma vez por ano, viver para o próximo.
Mas como todo ritual, a coisa tende a se tornar massificada, áustera, absolutamente burra. Pessoas lotam centros de compras de maneira automática, sem pensar em sentido e prazer, de uma forma quase vulgar.
A publicidade engole os sonhos. O consumismo apaga a beleza e o brilho das luzes do natal mágico. Cria-se novos símbolos para o lucro, e abordagens mais comerciais de antigas verdades.
Tudo se torna demasiado e de mal gosto. É uma distribuição geral de roupas baratas, canecas, gravatas e sorrisos sem-graça. É triste, enfadonho e sem sentido.
Mas o natal também é a celebração da esperança. Do "um menino nos nasceu": Ele continua dando presentes para o flanelinha e para a moça do gol. Ele continua salvando, Ele continua amando. É essa boa nova, o raio de luz nas sombras cinzas do mundo. Um dia de lembrança, quando as pessoas falam de paz e pazes, de amor e de boa vontade, no meio de um ano inteiro de gente se engolindo e se detruindo, voltadas ao próprio umbigo.
E por isso, é o contrário do sistema.
O natal é o inverso do que se vive, o avesso do que você espera.
E por ser a celebração da esperança, acredito que ainda, um dia, aprenderemos a celebrá-lo.

Feliz Natal para todos vocês.

1.12.10

Nozes não somos as árveres.


Se, ao ver que existem ervas daninhas no jardim, o jardineiro resolver corta-las rente ao solo, terá uma terra limpa e cuidada por uma semana. Assim que cair a primeira chuva, o mato voltará a crescer e sufocará as plantas boas.
O homem é como a terra. Não é bom nem mal, mas florescerá de acordo com o que for plantado nele. Nennhuma injúria cresce sem brotar de uma semente. Nenhuma violência se manifesta antes de ter virado um tenro broto verde. Assim como nenhuma flor cresce simplesmente do vazio, sem ser levada por alguma força externa.
O pior vilão e o melhor herói que estão entre nós são resultado de complexas redes interrelacionais, psicossociais, culturais, demográficas, biológicas e espirituais. Isso é o que define quem somos e quem são esses que estão nos cercando agora, em todos os cantos do mundo.
Mas nós acreditamos ter poder de julgar o certo e o errado. O digno e o indigno. O salvo e o condenado. Nós apontamos falhas, menosprezamos diferenças e criamos coisas como as classes sociais e a pena de morte para distinguir o bom do mal. Separamos, catalogamos e rotulamos os jardins desse mundo. Não temos compromisso com a terra, com o desejo de purificá-la, de fazermos com que fique melhor para quem virá colher os nossos frutos semeados.
Temos medo. Temos medo de cavar muito fundo em nosso interior, de arrancar todas as raízes daninhas, de revirar a terra, de queimar as sementes das pragas de nosso coração. Queremos a cura em frascos de agrotóxico que tomamos para esquecer, em respostas rápidas como o jardineiro que corta o mato rente ao solo.

29.11.10

Não é o alívio

Pedes-me amor; é tudo o que ofereci.
Pedes-me ombro, consolo e disposição; é tudo o que entreguei.
Mas se peço a você que deixe esses fardos pesados à soleira da porta, que ao me encontrar venha com o coração aberto e grato, me nega com um muxoxo de ira.
Você diz que quer minha compreensão, mas vejo que o que você ama é o peso, não o alívio.
Então, se por ser mordida, a mão estendida se retrair, não culpe o medo de quem te afaga.

22.11.10

Sobre trilhos e rodas - Parte 1

Eu não tenho carro. Até sei dirigir, coisa que aprendi com observação, não com prática, porque sou muito sistemático para aceitar infringir as regras de transito e brincar de burguês aqui pelas ruas de Guarulhos. E o fato de eu não ter carro (nem carteira de motorista) leva a uma consequencia inevitável: Tenho de usar transporte público.
E só quem usa o sistema urbano de transporte para cruzar os quatro diferentes pontos cardiais da maior metrópole sulamericana sabe o que é. Se encontra gente de todo tipo. Gente que, inclusive, nem parece gente.
Já ví uma senhora obesa ser expulsa do ônibus sob protestos do cobrador, diante de uma delegacia de polícia, por estar fumando maconha, esparramada no banco traseiro. Já recebi ameças de morte porque esbarrei em um rapaz depois de uma freada brusca de metrô. Já caí no vão do trem, na estação da Luz, por estar desatento ao fato de que quem está na porta será, necessariamente, empurrado de maneira abrupta para fora do vagão. Meus pés vacilaram, e eu fiquei entalado graças a minha robusta caixa toráxica.
Não só de experiências consiste minha observação, mas também de detalhes singelos, de olhares, toques e sorrisos. Ví paqueras frustradas. Ví gestos de cumplicidade silenciosa. Ví arrogancia, ao se irritar por dividir o mesmo espaço com tanta gente feia e suja. Nesses tipos de lugares, vemos o melhor e o pior do ser humano.
O que me faz acreditar que, se Jesus tivesse nascido em torno da década de 80, provavelmente estaria nesse exato momento pegando a linha vermelha, sentido Corinthians-Itaquera.
Mas não estou falando de divindades. Essa nunca foi a intenção desse blog. Quero falar do oposto, de nós, a humanidade: O que nos diferencia dos seres espirituais não é a capacidade de se santificar ou realizar atos mágicos (Pergunte ao David Copperfield). A questão é que não somos estáveis. Pelo menos partindo do nosso próprio ponto de vista instável e imprevisível. Em contrapartida, Deus é bom, e essa criatura rastejante que possui mais nomes que uma ligação química, é má. Não há mudança nesse comportamento, nem nunca haverá.
O problema é que somos fanáticos e reacionários. Até o mais libertino dos homens projeta Deus e o diabo em seus próximos, ensinando tal e qual é a verdade entre o bem e o mal, conforme sua própria opinião (instável e imprevisível). Até aquele que prega que o bem e o mal não existe, ou que ambos são forças energéticas que devem ser balanceadas através de alguma técnica espiritualística maluca se encaixa nessa descrição.
E todos pegarão algum tipo de transporte público uma vez na vida.
O que dá o gancho para meu ponto inicial: O bem e o mal não nos cercam. Esses que estão em nossa volta são apenas pessoas.
Aquele senhor de idade que meteu o dedo no meu rosto hoje, me culpando por ser jovem, é um ótimo exemplo disso. Naquele instante eu era o diabo para ele. Representava todo o mal que uma sociedade que não respeita seus anciãos é capaz de produzir. E eu estava sendo acusado como vilão, pois as placas de sinalização dos ônibus não são nítidas o suficiente para idosos com vistas cansadas.
E ele, para mim, também era o diabo. Exigiu que eu saísse do meu lugar, que não era reservado para idosos, por pura implicancia, uma vez que haviam lugares vagos para ele se sentar confortavelmente. Eu era a vítima de um ser impuro e cheio de maldade.
Então foi embora antes de se sentar no lugar que acabei cedendo. Ele leu a placa perfeitamente, deu o sinal, e entrou reclamando com o motorista por ter parado alguns metros à frente do ponto "correto".
Temos confiança na exatidão de nossa justiça. Temos muitas respostas do que é o correto e o que não é. O que é o bom, e o que é o mal. Temos muitos argumentos. E os preconceitos não são nada mais do que certezas. Toda a maldade cometida por homens instáveis e imprevisíveis vieram de conclusões absolutas.
Em contrapartida, toda bondade manifesta por homens igualmente instáveis e imprevisíveis derivam de uma mesma pergunta:
"e se eu estiver errado?"
"e se isso puder ser mudado?"
"e se ela realmente for o amor da minha vida?"
"e se existir algo além disso?"
"e se eu deixar o leite condensar?".

18.11.10

Oceano

Sua vida é como um largo e vasto oceano.
É necessário ser leve, flutuar na superfície. E então, periodicamente, mergulhar fundo e buscar tesouros escondidos na profundidade do ser.
Não ajuda viver sondando o fundo, pois a pressão esmigalha seus ossos e arranca seu fôlego. De nada vale viver boiando sob o sol morno, enquanto a vida se espalha por todos os lados, alheia ao seu medo de encarar o escuro.
Então, se aprendermos a viver mergulhando e submergindo, periodicamente buscando fôlego e encontrando essas pequenas alegrias em ser leve e real, tudo terá sentido.
Vejo peixes engraçados, crustáceos articulados se movendo com graça, moluscos, plantas e fungos aquáticos. Vejo formações de corais, enguias e criaturas sombrias das grutas. Todas fazem perfeitas analogias de tudo que sinto, mas não há tempo para argumentos.
Debaixo do mar, não há espaço para pessoas pesadas.

8.11.10

E no último episódio da 1ª temporada de The Big Bang Theory...

Pouca gente tem esse hábito, mas eu sempre pauso quando encontro anotações do produtor nos finais dos episódios que assisto aqui em meu PC.
Muitas vezes são desabafos e críticas, outras vezes, são comentários engraçados, mas dessa vez, o que encontrei, foi isso:


Chuck Lorre produções #212

Acredito que as vozes do medo, ambas provenientes do exterior e do interior, só podem ser neutralizadas confiando na voz que vem do coração. Fique quieto e a ouça. Se ela fala de amor e compaixão pelos outros, pelo mundo em sí, pode até ser a voz de Deus - ou algo razoavelmente semelhante. Se, no entanto, ela rosna com medo do desconhecido, medo de perder o que você tem ou de não conseguir o que quer, então deve ser a voz de Rupert Murdoch - ou algo razoavelmente semelhante.

Meu mundo é escarlate

Eu vejo, em semblantes sobrecarregados de traumas, um medo.
Não é um medo racional, daqueles que somos movidos a abraçar por um instinto maior de sobrevivência. Não se trata de pavor de algo que simboliza a morte.
Não são por coisas ruins que essas pessoas ficam amedrontadas. Elas temem o amor.
E isso é tão sério que eu mesmo, por rotineiramente tocar no assunto, sou taxado de piegas, até de repetitivo. As pessoas não querem mais ouvir essa palavra.
AMOR.
Ligue a TV, e você verá os temas: Reprisa-se romances viscerais, exibe-se libidos inflamadas, escancara-se violências emocionais, mas do amor não se trata. Não dá ibope. É velho, duro e intolerante.
O amor assusta.
E os argumentos de quem assume o partido do "desamor e desapego" são, em todas as situações, falhos. Parecem bêbados gagos balbuciando explicações para personagens invisíveis de sua embriaguez. Não convencem ninguém, mas por espelhar um medo geral, as pessoas abraçam os argumentos. Eles dizem: "amor se tornou uma palavra muito desgastada. É necessário tomar cuidado em dizer. São poucas as pessoas que amamos de verdade."
Olhe para aquele morador de rua. Você não o ama, é verdade. Porque se o amasse, faria algo por ele. O mesmo serve para aquele seu amigo que está se acabando no vício, e você fica calado. Porque o respeita? Não, porque não quer a responsabilidade de denunciar o problema e talvez, por conta disso, perder os benefícios que ele lhe oferece com sua amizade. Resumindo, você realmente não o ama.
O amor gera compromisso. Quando dito, cria um vínculo de quem oferece para quem o recebe. O amor é uma promessa, a maior delas, que diz: "independente do que você fizer, eu estarei ao seu lado".
Não é de se admirar que assuste.
E também não é de se admirar, numa sociedade em que se tem medo de amar, que filhos planejem a morte de pais, que crianças sejam violentadas até a morte, que animais sejam extintos pelo puro prazer da caça, que poderosos controlem camadas sociais supostamente frágeis para seu próprio benefício. Não é de se admirar a fome, as epidemias, a miséria.
E talvez seja hora de eu parar por aqui, porque os críticos, fãs do incorreto, que vêem o mundo num amálgama de cores preto-acizentado-arrocheado, podem em breve me taxar de infantil ou maluco. Dirão que vejo um mundo cor de rosa por sugerir essas coisas.
Mas poupo-lhes o esforço: Meu mundo perfeito não é rosa. É vermelho escarlate. É da cor do fogo, do sangue, da paixão. O meu mundo perfeito é intenso como é intenso o amor de Deus por você que me lê. No meu mundo perfeito não há espaço para termos genéricos, para promessas superficiais, para manipulações, para níveis sociais. Meu mundo perfeito é lavado pelo sangue de alguém igualmente perfeito que ordenou em toda sua autoridade: "Ame seu próximo como a você mesmo".

30.10.10

Pessoas de plástico


Conhecí um homenzinho de plástico que prometia riquezas. Ele mesmo construiu para sí um império de plástico: Blocos montáveis, e de fundo, pilhas de coisas fabricadas.
Suas emoções também são plásticas, medidas, moldadas conforme sua vontade. Seus amigos são descartáveis, peças de um jogo que joga. Avança casas pintadas no papel cartão, de acordo com o número dos dados que diz Deus jogar. Participa de uma igreja sintética, de pessoas de barbas, ternos, casamentos e discursos padronizados. Tem conversas cortadas no estilete, montadas no tabuleiro, agrupadas com durex.
Sua afeição era passageira. Se apegava na utilidade, na forma, e não no conteúdo. E então passava adiante. Ele dizia: Te amo. Mas suas palavras eram como peças de lego, montando argumentos, se encaixando, só para no final possuir uma função.
E então fui me encontrar com o Pai Tempo. Ele estava sentado sobre uma colina alta, olhando para o mundo esfumaçado ao seu redor, com um sorriso singelo preso no rosto. - Filho - Ele me disse. - Ouça isso que o plástico despreza: Quanto mais o homem avança em ciência, mais cria formas de se transformar em sua própria produção. Seus amigos se tornam ferramentas, seus vizinhos obstáculos, e seu trabalho é só uma forma de comprar todo o resto. Então o amor, que não pode ser fabricado, desaparece.
- Esse seria o maior dos sinais do fim de minha vida, não é?
Enquanto ele ria gravemente, eu abraçava meu amor. Eu sabia que era necessário ser profundamente sincero e real no caminhar, sem negar o poder do invisível, daquilo que não poderia ser amontoado. O perfume dela estava impresso em sua carne, seus olhos amendoados me observavam atentamente, e eu sentia o arrepio, a brisa suave que bateu contra nossos corpos.
- O engano - Encerrou o Pai Tempo - Foi acharem que o sintético é o que permanece.

17.10.10

Tenho um novo amor

Tenho um novo amor.
Tem gosto de chocolate e vento forte.
Não quebra quando confrontado, e é diferente desse conformismo maçante.

Tenho um amor de risadas e café com doce de leite.
Com bits e bytes, e frases de caracteres contados.
Com postes-esconderijos e malabarismos. Trocas de silêncios.

Tenho um amor que é um riso contido.
É encontros às escondidas. Aulas mortas por conveniência.
Pleasure delayers. 3 nãos para um talvez.

Tenho um amor que caminha para um sim.

4.10.10

É sempre sobre mim.

Eu sempre escrevo sobre mim. Só não dissimulo.
Se eu digo amo, amo, é porque amo.
Se eu penso a respeito de algo, é porque julgo isso um alvo digno de consideração.
Se carrego meu blog de palavras pesadas, é porque assim estou, muito mais denso que o ar.
Se eu choro, é porque é nessa disposição que estou em meu espírito.
Se eu levanto minhas mãos para o alto, logo em seguida, rindo, talvez tenha tido uma súbita revelação de uma verdade importante, não que eu seja bipolar.
Se eu vivo cada momento nesse extremo brilhante de sentimentos, pensamentos e paixões, é porque não quero que minha vida passe como um banho morno em minhas intenções trapezistas a 10 centímetros do solo.
E se, sendo assim, eu te ofendo, peço legítimas desculpas. Ainda não aprendí a ser diferente, e não sei até que ponto eu deveria ser.
Afinal, cada um sabe a dor que carrega em seus peitos feridos de tantos pesos e medidas.


29.9.10

Microconto #6

A dinâmica da escrita é, para mim, como dar a luz. Concebida por uma ideia, é lentamente gerada, e nasce com vida própria.

23.9.10

Microconto #5

Era um monte bem alto de palavras empilhadas. Ele puxou "amor" e o resto caiu sobre sua cabeça.

22.9.10

A morada das nuvens


Existe uma estrada onde toda alma chega, algum dia. É uma parte seca e vazia do mundo, no meio de uma terra ruim de plantar o que quer que se plante. Lá, pássaros não cantam, não existem doninhas nem raposas cruzando o caminho. Você não verá a chuva ou carros de passagem, frutas em arbustos ou fontes que jorram água. Nem apanhará raios de sol dourados, pois lá é a morada das nuvens.
No meio dessa estrada há uma bifurcação. É onde acontecem as despedidas. Até lá caminham, de mãos dadas, conhecidos e colegas (porque o preço do tempo é a partida), nossas convicções e certezas (pois a mudança de espaço exige mudança de mente), amigos, inimigos, amantes e amores. Para lá caminham todas as almas que se arrastam sob esse lugar cinza e abafado, cheirando a suor e cansaço.
Essa bifurcação nos divide, e o pensamento nos sobrecarrega de culpa, por saber que parte do que somos deve partir e nunca mais voltar.
E é diante dessa bifurcação que chegamos. Ao fim de uma longa e seca estrada, é chegada a hora da escolha: Tornar-nos maduros. É necessário aprender o que ouvir, com quem repartir, a quem dar valor. É necessário aprender a viver. A fantasia não sustenta o sonho concreto, e tudo o que é temporão deve pegar o caminho até o buraco do vazio. É necessário deixar que o mais fácil, o mais covarde e o mais frágil morram soterrados pelo peso do alicerce da responsabilidade. Que essa parte de nós, mesquinha e ignorante(e mesmo assim doce), vá embora, pois o caminho estreito não aceita acompanhantes. A vitória não aceita divisão em sua glória.
As mãos se soltam lentamente com um sentimento de pesar. Não há despedidas. O nosso mais frágil caminha para o fim, e a estrada agora se ergue à nossa frente, ameaçadora. Não mais nossa, quero dizer, porque já não estamos: simplesmente está. O homem crescido está sozinho para caminhar, passo a passo, para seu próprio futuro, que dessa vez não será construído em conjunto, mas por só um par de mãos. "Senhor dos meus passos", sorrí ao murmurar, e apesar da dor da partida, sabe que será bem melhor até a próxima bifurcação, onde a estrada há de se dividir novamente e mais escolhas serão feitas, e mais um pouco dele morrerá, até a perfeição.

19.9.10

Monstro-orquídea.

Ele vem subindo pelo tronco como uma orquídea, uma flor parasita de rara beleza.
Se agarra à madeira, à parede, com tanta força que o nó de seus dedos imaginários empalidece.
Exige, beirando a fúria, a atenção de seu dono, esse coração tolo. A carência sedenta pede atenção de quem passa. Quer seu nome brilhando lilás nos neons da cidade das emoções, que grita: Esse perserverante, notívago e instável monstro bonito quer mais calor!
E quer saber?
Para mim, sempre será bem vindo. Tem um lugar à mesa e uma menção honrosa num livro que ainda será escrito, a respeito de como foi derrubado por uma mão macia de unhas pintadas de salmão.
Mas até que seja posto ao chão, o monstro é meu, come em meu prato, rí das minhas piadas, e é companhia contra esse monstro maior, a solidão escura e fria que fica lá fora, sulgando tudo num vórtice para o vazio.
E ele é engraçado, porque sabe que será derrotado. Me sorrí com esse sorriso quente e totalmente estúpido, como sua essência, e diz que a próxima mão a o derrubar será ainda mais delicada que a anterior. E não sei se é uma ironia, porque nos meus registros, minhas marcas e paredes, ele sempre se ergue mais forte e risonho.
Como essa flor estúpida e rara, que cresce em pântanos e que me faz rir com o sarcarsmo.
Então eu digo: -Sim, eu sei que a próxima mão será ainda mais macia e bonita que a anterior. Ela terá unhas de salmão e perfume de baunilha.

17.9.10

Microconto #4

Descobriu que o segredo para manter-se apaixonável é manter-se constantemente apaixonado.

14.9.10

Microconto #2

Viveu a vida provando para todo mundo que estava certo, até que, certo do que fazia, pulou de um prédio porque não lhe restava vida.

12.9.10

O segredo dos mártires

Foram só alguns acordes, de uma música que nem me recordo no momento, mas que ativaram alguma coisa nessa pilha de memórias empoeiradas que ficam em alguma estante trancada atrás de uma porta com uma placa escrito "entrada proibida", de minhas lembranças esquecidas. A poeira subiu como uma nuvem e um livro foi aberto.
Lí um trecho de minha vida mais fanática e reacionária. Quando eu acreditava que tudo eram sinais e confirmações. Quando eu me trancava horas em meu quarto num esforço sufocante de agradar um deus vingador, sério e exigente. Quando eu, armado de toda ideologia teológica, atacava, irado, demônios em amigos e parentes.
Folheei algumas páginas, e lí outro trecho que narrava uma série de decepções que tive. Parágrafo por parágrafo, experiências de amargura e frustrações. Ideologias que antes eu abraçava agora me atacavam. E o monstro que criei, com cuidado e carinho, ao tomar a fase adulta, me perseguia sem clemência.
Irritado, pulei um grande trecho e comecei a leitura novamente. Agora eu estava revoltado, atacando novamente, não mais com ideologias teológicas: com mãos nuas. Esse era meu revide contra o mundo que eu defendí com tanto carinho, mas que havia se voltado contra mim. Era meu próprio contra-ataque. Eu ví minha vingança venenosa nas veias saltadas do pescoço, nos olhos serrados e nas lágrimas contidas. Eu cheirava a suor, sangue e lágrimas.



Interrompi a leitura, porque a música invadiu o ambiente. Sim, a mesma que havia destrancado a porta com o "entrada proibida", e me feito folhear o primeiro livro.
Então reparei, atento na leitura, que sempre atacara ao me sentir vitimizado por uma situação. Era o direito de reagir e demonstrar poder de uma maneira punitiva, julgando que minhas vítimas e quem me observava haveria de concordar com o ataque, por ser "justo". Era minha fatia do bolo. Meu momento. A prova do meu poder.
E pensando bem, não é assim que todos amargurados do mundo, infelizes por carregarem ideias de ódio e vingança, fazem? Não é sobre isso que se baseia o grito de "justiça" carregando placas na frente das delegacias? Não é esse, acima de todos, os estopins das guerras? Não é assim que pensa o velho coronel que baleia o rapaz que se aproximou de seu carro? Não é sobre isso que se sustenta nosso atual sistema penitenciário? Não é assim que foram criadas todas essas ideologias radicais, o feminismo, o ateísmo fanático, o taliban? Não é contra esse sentimento, acima de tudo, que Cristo pregou?
Ainda sob a harmonia da musica e espantado, consultei todas as páginas na extensão do livro, e descobrí que havia esse elemento, Cristo, na leitura, que não podia ser atacado e que nunca me atacou. Ele não exigia horas de oração nem leituras pesadas. Ele não acrescentou mais peso quando o mundo se voltou contra mim. Nem mesmo ajudou em meu ataque irado. Eu reparei que esse elemento invisível sempre estivera lá, nas notas de cabeçalho e rodapé, imutável e constante.
Me dispus a ser atacado, então. Esse, eu creio, é o segredo dos mártires. É por isso que sorriem quando, injustiçados, foram apedrejados até a morte. É esse amor extremista, irracional, intolerante, que pode combater todo o mal causado pela "justiça" humana.
Sabendo disso, fechei meu livro. Espanei a poeira e o guardei para consulta, em algum lugar à altura da mão. Tirei a placa da porta e saí para a luz do dia, que não é seguro, e que nunca foi.

31.8.10

Microconto

Ele sabia que era como pular pra morte, e por não conhecer o timing do para-quedas, se esborrachou no chão sem desfazer o sorriso.

Paradoxo

A gente nunca vai ser bom o suficiente.
Você acha que por dar aquela esmola gorda ao pedinte malcheiroso na rua, está se tornando quase um mártir da bondade do mundo, mas, no fundo, tem a certeza que isso é muito pequeno, muito pouco para aquela pessoa.
Você quer ser o amigo perfeito, sempre atento, sempre disposto, sempre amável. Mas um dia acorda irritado, e sem querer uma grosseria aleatória é disparada contra aquela pessoa que você realmente ama, e ela nunca mais fala contigo.
Ao se esmerar em ser alguém que possa ser amado, engraçado, carinhoso e verdadeiro, e ao ter seu amor negado, sua ira inflama por julgar ter direito sobre esse bem conquistado por todo caráter e bondade que demonstrou no processo.
Se você vence medos e traumas para se aproximar daqueles por quem se sente inspirado ou apaixonado, pensa que o pior já passou. Mas a aleatoriedade da vida, com seus infinitos processos ínfimos e incontroláveis, te passa a perna.
E esse é o choro dos vitoriosos derrotados.
Se não existe explicação para a dor que te ocorre, nem motivo para o sofrimento que passa, sorria e agradeça, porque assim foi com todos os bons que te sucederam. E um dia, quem sabe, ao fazer as coisas da pior forma possível, tudo dê certo.
Então toda a bondade e gentileza compensarão.
Sim, sorria, e se sinta livre para errar acertando, novamente, pois o destino aleatório e a alegria sem graça da incerteza te acertarão, tão matematicamente certo quanto possível.

27.8.10

O erro me fez um homem melhor

Recentemente, entrei numa discussão que muita gente achou inútil. Outras pessoas, no entanto, gostaram tanto que acharam necessário que eu colocasse-as em evidência para outras pessoas pensarem a respeito.
Um ponto importante é que eu não me acho o dono da verdade, nem conhecedor pleno da Palavra de Deus. Mas sou um questionador, e como diria Gilberto, às vezes não consigo aguentar "qualquer sacanagem ser coisa normal". E foi com um espírito de questionador que julguei o texto no link http://sexxxchurch.com/home/guarde-seu-coracao/, e numa exposição de idéias entre amigos, por e-mail, o rebati com o texto que vocês lerão a seguir:



Sou a antítese do que o texto sugere que seja um homem, e não falo isso por orgulho ou presunção, apenas porque fui criado assim. Meus pais são casados a mais de 26 anos, e apesar da idade avançada, são apaixonados até hoje. Apaixonados a ponto de viajarem sozinhos, dançarem sem música e se beijarem calorosamente, para horror dos filhos. Isso se deve ao respeito com que meu pai trata minha mãe, e vice-versa. Nenhum relacionamento dá certo sem esse sentimento de companheirismo, e isso foi o que eles me ensinaram, e no que eu acredito, por ter um ótimo exemplo funcional.
Outra coisa que meu pai ensinou a mim e a meu irmão é que devemos respeitar as garotas, e nos respeitar. E uma coisa que minha mãe ensinou à minha irmã é respeitar aos garotos, e se respeitar.
Entenda que se respeitar discerne a ação do outro até saber o que torna a coisa prejudicial ou não para sí mesmo. INDEPENDENTE dos sexo de quem estamos falando.
Um cafajeste transvestido de poeta pode oferecer uma flor querendo outro tipo de prenda. Uma vagabunda pode fazer cara de santinha, vestir roupa de crente e ler a bíblia até dar a famosa chave-de-perna no idiota que é alvo de sua malícia.
E eu tenho um exemplo para cada caso, vindo direto de meus pais. Não vou entrar em detalhes para preservá-los, e conto que vocês interpretem minhas palavras como verdadeiras.

Quanto a mim, sou virgem. Não tenho vergonha de falar, quem está próximo de mim sabe, e eu acho bom usar isso como exemplo dessa luta que tomo como minha, a da valorização do sexo masculino, que é tido como "irremediavelmente promíscuo" pela opinião geral. Sou um homem solteiro de 24 anos, e virgem, que não precisa ficar olhando para a bunda das garotas com quem cruzo na rua, e que sabe tratar mulheres como amigas, respeitando particularidades, mas exigindo respeito em volta. NÃO me julgo especial por isso, apenas sei que meu comportamento normal e aceitável deveria ser tomado como uma regra, e não exceção.
Sempre agí na base do respeito, exigindo e tentando oferecer ao máximo. Sempre procuro, em meus relacionamentos, ser transparente e sincero.

Mas, novamente, por exemplos pessoais, já ví um sem-número de casos de casamento "regrados" dentro da igreja que terminaram mal. Não se iludam, eles seguiram cada "regrinha" basica dos relacionamentos cristãos. Conhecí um casal que praticou a chamada corte, com flores, bombons, declarações santas de "quando o dia chegasse", e que acabou em espancamento e uma série de estupros. Isso aconteceu, porque eles não se conheciam. E não digo que não se conheciam em suas qualidades, mas não se conheciam em seus erros. Eles não se permitiram ser transparentes o suficiente no namoro, no prenúncio do casamento, a ponto de cada um saber até onde começa o lado feio da criatura ao lado. Todas aquelas regras cooperaram para um fim trágico. Continuam casados, inclusive, e ambos infelizes.
Estou falando sério, coisas parecidas acontecem em famílias de pessoas que são até próximas a nós, e não atentamos a isso! Casamentos perfeitos vindo de regras sistemáticas que acabam em lágrimas. Isso é muito, muito frequente.

Sim, eu já errei bastante, e me frustrei. Mas isso acontece porque arrisco. Tenho amigos que até hoje repudiam a aproximação do sexo oposto. Uma amiga minha chora frequentemente porque tem mais de 27 anos, quer casar, mas não tem nem namorado, e reclama que o jeito dela assusta os outros garotos.
Não vou negar, é verdade. Ela construiu um padrão tão alto de caráter para alguém que queira namorá-la, que eu julgo impossível ela achar isso. A não ser que namore o próprio Jesus Cristo. Ela constrói barreiras, coloca limites sem motivo e se decepciona por atitudes isoladas. Se ela não mudar de atitude, vai continuar sozinha e culpando todos os garotos de serem muito moles, dizendo que é obrigação deles conquistá-la. Ela, com todas essas regras, se coloca como prêmio. Não se permite ser feliz e conquistar o que quer, só porque disseram que assim age uma garota de caráter. Se isso não se chama machismo, não sei mais o que é.

Agora, levante a mão quem conhece uma mulher assim.
O mundo está apinhado delas.

Como eu disse, já me frustrei bastante. E tenho descoberto outros caras de igual sensibilidade, tato e respeito, que já se frustraram com a mulherada. Casos de caras que foram constantemente traídos, seduzidos e abandonados, caras que levaram a sério compromissos à distância para se verem usados em joguinhos particulares não são raros, nem dentro da 3P! Mas não é por causa disso que se decepcionam e dizem que vão parar de tentar, e não é por conta disso que se fecham. Você não vai encontrar sugestões para os garotos "guardarem os corações". Mesmo porque, se já é difícil encontrarmos uma garota disposta a ver o que é bom em nós antes de nos tomar como um búfalo procriador cheio de libido, imagina se seguíssemos os mesmos conselhos dados às garotas: se isolar, se resguardar, evitar andar perto de pessoas do sexo oposto. Aí que essa minha amiga NUNCA vai se casar mesmo.

A vida é arriscar, galera. Ninguém ganha nada se escondendo, e tendo medo das sombras que são projetadas na parede. São só sombras. É claro que precisamos descobrir, conhecer e impor limites. Mas se guardar nunca fez ninguém feliz, MUITO pelo contrário.

Eu posso ver todas essas marcas no meu coração, que já foi muito ferido. Mas acredito que vou encontrar quem o tome com carinho e trate cada cicatriz, cada trauma e medo com respeito, amor e liberdade; sem pressão, só porque me ama. E eu quero fazer o mesmo pela pessoa. Não quero encontrar uma princesa de cristal que nunca viveu nada na vida, super delicada a qualquer intemperança, que não sabe dizer não, que não conhece os próprios desejos e nem os próprios limites. Desde já posso dizer que valeu a pena cada tombo e cada tropicão. Isso me fez um homem mais maduro, responsável e sincero. O erro me fez um homem melhor.

Coisas pequenas. Coisas simples.

Quando eu viajei para aqui do lado, foi o que me chamou a atenção. Eram só 600km, quase uma reta, e eu estava lá, no topo do Morro do Borel, no Rio de Janeiro.
Depois de dois dias de discussões e pressões de como haveria de ser feito um evangelismo intencional, de desfiles de maquinário militar na posse de traficantes em motos, de ensaios exaustivos de peças sistemáticas de pantomimas quase entediantes, de agitação popular pela suposta morte do gerente da boca, de julgamento e análise de caráter dos dois lados da trincheira da salvação, o caveirão subiu, metendo bala em meliantes e o que tivesse o azar de estar na frente, salvo ou não. De forma que as pessoas agiram como num estouro de manada. Correria, pânico, histeria. Invocou-se o nome de Deus e outros tantos chulos, e todos se esconderam em lugares supostamente seguros enquanto os tiros cortavam o ar.
Mas nenhum desses eventos me impressionou. Talvez porque a gente viva numa realidade muito violenta, você sugira, e eu tendo a concordar. Mesmo não sabendo o motivo concreto disso, não fiquei apavorado como a maioria das pessoas, orando por Deus fervorosamente contra um fim tão trágico como o de ser atravessado por tiros de fuzil. Na verdade, de uma certa forma, eu até achei engraçado. Nada que não tenha visto anteriormente em algum filme de ação, eu diria.
Fiquei impressionado, aí é verdade, no dia seguinte. Depois de muitas piadas sobre o comportamento deplorável de uns e de outros diante do poder bélico da Tropa de Elite carioca, pusemos em prática o plano de escalada do morro, passando por quadras, vielas, ruas serpenteantes que entravam como túneis embaixo de casas, naquela típica paisagem de escadas de lajes contra o céu azul da Guanabara. E foi quando encontrei, no meio da caminhada, uma bola de gude a alguns centímetros de uma cápsula deflagrada de 9 mm. Esse símbolo foi mais forte que qualquer explosão, flash de luz ou tiro. Gritou mais alto que qualquer pregador de rua com uma bíblia na mão e algumas veias saltando no pescoço. Correu mais rápido que o sangue escorrendo em laje batida ou dentro de viatura de polícia. Até hoje os guardo como espólios de guerra, como uma mensagem que não posso esquecer: A bola de gude e a cápsula.
Assim é tudo que é pequeno e simples. Uma lasca de pedra, uma marca de perfume, uma referência gramatical. Qualquer informação perdida nesse mundo de símbolos é muito mais poderosa que milhares de palavras e promessas enfáticas.
Pergunte ao apaixonado, se de todas as coisas mais marcantes na memória não estão as mais simples: a cor dos olhos ou o barulho que o ser amado faz quando rí.
Pergunte a quem está de luto se a memória mais dolorida não é exatamente aquela que é menor dentre todas: o apelido secreto, o dia em que perdeu as chaves na privada, a maneira que enxugava a mão na roupa.

Giro um pedaço pequendo de mármore na mão e sorrio. Não deve ter mais de dez gramas, é branco, irregular e sem marcas, e é uma lembrança de um dia que matei aula para ouvir piadas e histórias dentro de uma cafeteria. Absolutamente rotineiro. Gigantesco, único e maravilhoso pedaço de mármore. Mais poderoso que uma história, mais real que uma fotografia, mais completo do que qualquer palavra a respeito.

23.8.10

Sobre crescer

De todas as experiências, acredito que a mais assustadora seja "o amadurecer". Quando o humano, tal qual um broto de uma folha aleatória, desabrocha num sentido superior de ser, em sí completo e auto-sustentável.
Mas esse papo dá medo. Alguma parte de nosso subconsciente, devastada de pavor, se agarra à qualquer resquício de infantilidade antes de ser totalmente varrida para as portas de nosso limbo mental.
E é aí que a coisa entorta.
Admito minha imaturidade, e admito que ando às turras com minha consciência pesada. Mas eu preciso crescer.
Onde fica o interruptor para parar essa roda gigante?

Quero descer!

1.8.10

Prática e teoria


Eu tenho um sério problema com "igrejas".
E para complicar, participo de duas. Com doutrinas completamente diferentes.
Recentemente um dos pastores entoou uma crítica direta à linha teológica da outra igreja que frequento, em um sermão que elogiava e justificava a "instituição igreja", e toda organização administrativa que ele julga necessária para subsistência da mesma.
Tudo pura teoria.
Nesse dia, havia chegado cedo, e estava em meu canto com O Nome do Vento aberto, absorto na leitura, quando um "membro" da "igreja" me abordou, com todo aquele carinho sistemático misturado com uma ironia santarrona, que crentes são tão bons em entoar:
- Ei, irmão! A quanto tempo! Eu estava com saudade! Porque você anda sumido? - Falou, enquanto pousava a mão no meu ombro.
O pior é que essa figura nem da minha "igreja" era. Eu o ví uma vez, se tanto, num passeio que fiz com amigos, e se não fui hostil com esse cara desde que nos conhecemos é porque tive uma ótima educação por parte de meus pais. Mas deixo aqui registrado que para mim ele é um tremendo babaca intolerante, ignorante e arrogante que sempre acha que está certo, que nunca desmonta da pose de superioridade e santidade.
Odeio gente assim. Sim, odeio, porque sou humano, e até que o Espírito Santo concerte esse meu sentimento em relação a ele, será assim que eu me sentirei.
Engolindo minha vontade de dar uma resposta engraçadinha para rebater a ironia, só respondi:
- Eu não sumo. Não tenho esses poderes. Quem quer me achar, me acha. - Sorrí e me ajeitei na cadeira, para tentar deixar claro que ele não tinha a permissão de me tocar.
- Ah, mas a gente sente sua falta! Sabe que eu te amo, né?

Amor.

Está aí a defesa da maior parte dos pregadores do "ir à igreja é agradar a Deus". Dizem que as comunidades são antros de amor, onde nos servimos mutualmente, em comunhão. Na prática, a teoria é outra, como diria meu avô.
Olhei nos olhos do rapaz e disse:
- Relaxa, velho. Eu estou bem. - O que eu queria mesmo era acabar com o assunto hipócrita e infinitamente intrometido. Eu nunca dei a oportunidade para aquele cara opinar na minha vida, e não daria agora.
Sorrí e comprimentei o outro rapaz que o acompanhava. Por esse sim eu nutria alguma simpatia. Ele retribuiu o sorriso e comprimento, e por fim me deixaram em paz para terminar de ler. Não antes de tentar me tirar do meu lugar, afim de me arrastar junto para fazer alguma dessas coisas tremendamente chatas que pessoas como ele costumam fazer.
Naquela noite, durante o culto, pesei o que o pregador dizia. Apesar de todos meus defeitos, sei que nem sempre estou certo, e é bem verdade que muitos dos meus traumas vieram de feridas. E muitas, por minha responsabilidade, também. Quando ele bateu o martelo e pediu para que viesse à frente quem já se viu ferido por homens, e por isso sente dificuldade de "participar" da "vida de uma igreja", eu fui. Porque é assim que eu sou. Ele, pessoalmente, orou por mim, mas, obviamente, uma oração não foi o suficiente para responder todas as minhas perguntas. Orações raramente respondem perguntas. Tanto que o procurei no fim do culto, perguntando se ele tinha um tempo para conversar comigo durante a semana. Deixei aberto para ele o dia e a hora, que me garantiu estar totalmente livre, mas que ligaria sem falta para marcar.
Passou-se duas semanas, e ainda estou esperando.
Sexta eu participei de um culto de envio de dois amigos próximos para Guiné-Bissau. Eles ficarão lá por um ano, em missão, no meio de um povo onde o evangelho não é bem aceito. Esse tipo de coisa extrema me faz lembrar que a igreja, na prática, ainda está viva (note que dessa vez não usei as aspas). Lá encontrei o mesmo rapaz que eu falei agora a pouco, me abraçando, me chamando de amigo e perguntando onde eu estava no fim de semana passado. Ele não sabe meu sobrenome, não conhece o nome da minha mãe, nunca comeu comigo na mesma mesa, nem sabe que tipo de comida eu prefiro. Ele nunca me viu chorar, não sabe no que trabalho, nem quanto eu tenho no banco. Não ficou irritado comigo quando começo a ficar chato dessa maneira que só eu sei ficar, nem riu comigo de minhas piadas histéricas. Nunca me viu beber demais, nem xingar os malditos burgueses capitalistas. Ele nunca me viu escrever, nem sabe se eu gosto de poesia ou de videogame. Ele só me viu uma vez na vida, mas se julga no direito de exigir:
- Quero te ver aqui domingo, heim?
Ao sair da despedida, fiz uma coisa totalmente nova:
Fui para uma balada.
Eu crescí como uma criança cheia de traumas e medos. Minha adolescência se desenvolveu mergulhada em videogames e sites da internet; de forma que nunca fiz as besteiras que todo mundo faz, coisas que são tão severamente agredidas pela "instituição igreja". Mas se eu for sincero, direi que na verdade nunca arrisquei. Nunca ousei. Nunca fui além do que me permitiram. Além do "puro e verdadeiro". Isso não se deve à minha devoção à verdade bíblica ou um sentimento sincero dessa coisa que todo mundo chama de "santidade". Eu simplesmente sou assim. Travado.
Na Augusta, encontrei duas pessoas admiráveis. Eles sabem beber, falar palavrão, fazer piada um com o outro, rir e dançar - ou não dançar - sem preocupação. Nos divertimos a cada momento: A cada vez que um deles fingia tão dramaticamente que se aproximaria de alguma garota que dançava na pista, cujo plano não saía da intenção. Em cada vez que alguém dizia uma besteira enorme. Em cada vez que nos permitíamos ser humanos, falhos, e nos divertir com isso. Nessa balada, encontrei Deus me ensinando sobre a graça dEle mesmo no meio de uma batida eletrônica.
Lembrei que uma vez me disseram que a música eletrônica é cheia de mantras, que o diabo usa para atingir uma disposição mental nos jovens a ponto de faze-los manipuláveis, e rí alto. Na prática, quem manipula mentalmente é a própria "instituição igreja". E com meios muito mais subversivos.
No meio da balada, ví minha verdadeira igreja: Algumas almas quebradas se divertindo de verdade, pulando e dançando músicas seculares. Nos reunimos em volta de um bolo de aniversário, e cantamos parabéns. Ganhei um pedaço, sem conhecer muito bem o aniversariante. Fui servido por ele, que sorriu para mim. Ninguém me perguntou onde eu estava semana passada, mas perguntaram se me veriam domingo. Não havia sarcarsmo ou cobrança no assunto. Eles realmente só me queriam por perto.
Leve assim.
No meio da balada, descobrí uma verdadeira comunhão. Uma verdadeira igreja. Eu pude falar de medos e traumas, sem ter medo de ser retaliado. Compartilhamos o que sentíamos como irmãos, não como mestres e discípulos, não como pessoas afastadas da verdade que precisam ser doutrinadas. No meio da balada ouve respeito e tolerância. Ouve amor e companheirismo. No meio da balada houve verdadeira sintonia.
Peço perdão para você que prega que isso é herege e errado. O que conheço na prática tem muito mais peso que sua teoria. Em uma "instituição igreja" eu só conhecí lavagem cerebral, hipocrisia, mentira, arrogância, antropocentrismo, intolerância, mesquinhez, preconceito, indisposição para humor, cafonice e ignorância. E medo. Muito medo.
Eu conhecí o medo de errar, medo de falar o que penso, medo de agir como quero, medo de tentar o que desejo, medo de buscar o que preciso, medo de amar a quem gosto, medo de ser quem sou.
Não é à toa que 70% dos jovens que procuram a psicoterapia para tratamento vieram de igrejas cristãs. E a maioria avassaladora, evangélica.
Mas o perfeito amor lança fora todo medo.

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Enquanto eu escrevia esse post, recebí uma ligação. Era alguém para quem não passei meu numero de telefone, que se abalou em ir atrás e descobrir, para poder me ligar e falar comigo. Afinal, "quem quer me achar, me acha".
Ele é dessa igreja de desigrejados, que ama antes de cobrar. Perguntou quando me veria, e o porquê de eu não ter aparecido por lá domingo. Ele não me deu um abraço, nem falou que está com saudade e que me ama. De uma forma engraçada, não me sentí cobrado, mas amado.

São 22h30 da noite.
Até agora, aquele pastor não me ligou, mesmo que pessoalmente eu tenha passado o telefone correto. Um membro deslocado de uma comunidade maluca que frequenta baladas, sim.

Uma é uma "instituição". Outra é um "corpo".

Na prática, a teoria fica muito mais bonita.

30.7.10

in - out



Em câmera lenta a máscara foi caindo do meu rosto. Centímetro por centímetro, em direção ao chão, bem devagar. Descreveu círculos no ar, mostrando em todos os ângulos os detalhes faciais, pintados à mão com cuidado. Refletiu no espelho toda delicadeza da porcelana, rebatendo um facho de luz incidente, colorida e ofuscante. Por um milésimo de segundo formou as cores do arco íris contra os grãos de poeira na penumbra do quarto, e então desviou, continuando a cair.
Ví o fundo oco e rústico da máscara. A parte de dentro não era bonita como a de fora, nem era confortável. Tinha uma cor opaca, um cinza chumbo, que de alguma forma me lembrava de guarda-chuvas numa tarde nublada. Lembrava escritórios de contabilidade e máquinas de produção de peças metálicas para outras máquinas que fabricavam cabos de guarda-chuva. Me lembrava ferro, sufoco e trabalho. Me lembrava de grades. Jaulas, gaiolas e prisões.
Continuou rodando, e a porcelana trincada olhou para mim. Os olhos vazios fitaram o teto do meu quarto e então me encararam, questionadores. Eram olhos sem alma. Tinha sombrancelhas franzidas, criticando o mundo, e julgando a todos. Apesar da beleza artificial das pinceladas sutis, era dura, forte e inquisidora. De maxilar largo e comprimido, como se estivesse de dentes serrados de raiva, com lábios finos e marcas de sombras que escureciam as maçãs do rosto.
Tocou o solo. A porcelana se vergou sob o próprio peso, rachou e se partiu, espalhando lascas rodopiantes para todos os lados. Laterais, chão, móveis. Alguns quicaram, outros acertaram minhas pernas, e me cortaram superficialmente. Outros atingiram o espelho, que não balançou nem trincou. A máscara se espalhou pelo chão, como um quebra-cabeças desmontado, com peças irregulares e cortantes.
O tempo correu, ergui a cabeça e toquei em meu rosto. Rocei a ponta dos dedos na barba por fazer, num rec rec ritmado, e me ví, de forma perfeitamente falha, em minha forma exatamente real. Ví cada cicatriz no meu dorso e face nus, ví meu nariz torto de tanto lutar contra inimigos que eu mesmo havia criado, e meus olhos vermelhos de segurar o choro, vermelhos de raiva e de angústia. Ví minha expressão insegura e ví o medo no meu semblante. Ví minha pouca estatura, meu rosto infantil e minha evidente fraqueza emocional e moral. Ajustei minha postura. Erguí os ombros, e sorrindo, caminhei para longe do espelho, descalço, sobre os cacos de porcelana perfurante. Andando resoluto, sentindo cada pontada de dor e deixando pegadas de sangue pelo caminho, abandonei o quarto na penumbra.
Lembrei de meu filme favorito. Erguí os braços e disse: - Deixe que o mundo lá fora leia minha mente. - E acrescentei: - Já não tenho medo de ser fraco.
A porta se fechou, o resto aconteceu numa profusão de imagens em fast forward: O quarto implodiu, fechando como se amassa uma folha de papel, como se um buraco negro estivesse sugando tudo para dentro de sí. Cacos, cama, cômoda, tacos do assoalho, teto e por fim o espelho. Num silêncio rasgante tudo fechou, dobrando para dentro, quebrando, explodindo e estilhaçando.
E por fim só restou o branco, esperando para ser escrito.

23.7.10

Meme: Sentimento nas músicas

O desafio é o seguinte: Selecionar, entre tantas músicas, uma que te faça ter sensações inexplicáveis.

Quando eu ví nos excelentes blogs do Thiago Bomfim,do Porto e do Eduardo algumas músicas que, de alguma forma curiosa, mechem com os sentimentos de quem ouve, sentí vontade de entrar nessa corrente.

Sim, eu sou meio intrometido.

Não sou tão manjador de músicas quanto esses caras, mas se tem uma que sempre que eu ouço me dá uma sensação esquisita de querer voar ao mesmo tempo que rio e explodo em milhões de pedaços coloridos é a All is love, trilha sonora do lindíssimo filme Onde Vivem os Monstros, que foi composta inteiramente por Karen O:

Nerds x Garotas

Ví uma tirinha no failblog:


E resolví criar minha resposta:


;)

20.7.10

Almas quebradas

As dores são indiscutíveis. Todos as sentem.
Há quem diga ser bobagem, que as almas podem ser restauradas, e encontram curas rápidas. Direto ao ponto, como Neosaldina acabando com dores de cabeça.
Há quem as esconda, num movimento egoísta de camuflar o medo que a possibilidade de parecer fraco o causa. Como quem esconde um câncer de quem ama, para preservar a pessoa do desgaste, mas descobre que mais desgastante foi ter ido longe demais. Acredite, conheço histórias assim. Uma suposta força que acaba em derrota, e em lágrimas.
A dor está presente no coração de todo ser que ama, pois é resultado da vulnerabilidade de quem aceita escancarar a alma para outros. De quem se põe a risco.
Conheci um rapaz que, mesmo acabando de sair da adolescência, é maduro, rico, bem sucedido e admirado por seus talentos notáveis. Ele anda com carro próprio e está para se casar em menos de um ano. Ao falar sobre qualquer assunto é firme e decidido: espanta moradores de rua com um comando duro de voz quando chegam perto de sua mesa de bar, sabe trilhar com sabedoria todas as regras sociais que exigem os relacionamentos; mas se torna quebradiço e sem convicções quando fala que sua noiva mal o vê uma vez por mês. Ele desconfia que o comportamento seja indecisão, eu desconfio que ela o esteja usando por status. De qualquer forma, a dor está aí.
Tenho uma amiga cansada de ser enganada. Promessas não compridas e pessoas covardes são rotinas recorrentes em seu coração ferido, de forma que está prometendo a sí mesma que não pode ser feliz, já que a culpa só é dela. A dor está lá.
A dor está no pai de família que levanta cedo para trabalhar com um coração pesado, em algum serviço infame, engolindo a angústia e a impressão de que nunca poderá crescer pois tem que alimentar uma família, a quem ama.
A dor está nos olhos que não marejam porque devem parecer fortes diante daqueles que o julgam. A fraqueza será imputada por fracasso, e da humilhaçao se seguirá o abandono, sinônimo de desamor.
Cada alma com que cruzamos na rua está encharcada de dores, mas em cada esquina se vende um elixir mágico com a cura instantânea. E se abrigando sobre aríetes de certeza, nos afastamos da verdade que nada nos pode curar. De que não precisamos ser curados. Não precisamos de paleativos para a saudade infinita que nossa alma sente pelo que é eterno e perfeito.
Quando buscamos uma outra alma quebrada para amar afim de curar essa dor verdadeira, queremos amar o que é eterno, e assim, tornar-nos sãos. Mas nenhuma alma igualmente ferida é sadia.
Quando nos enchemos com confortos e prazeres, nossa sede se torna cada vez maior por mais conforto e mais prazeres, porque, por mais que eles sejam deliciosos, uma hora, cessam. Queremos prazeres eternos, que não existem, nesse mundo escasso e limitado.
Ao olharmos para nossos deuses feitos de gesso e de discursos humanos, em que há a promessa de cura para todos nossos problemas, nos apegamos a uma fé obsessiva que acaba juntamente com o gesso despedaçado e com a eloquencia gaguejante do homem que se depara com o que não poderia prever. São discursos vagos e finitos, ao contrário de todas nossas perguntas eternas.
Nossa alma foi feita para andar de mãos dadas com a criatura mais bela do universo, na alvorada eterna de todas as coisas. Não é à toa que ela não é facilmente impressionável.
Com o risco de parecer presunçoso, proponho uma nova idéia, mas que é antiga, datada do começo de tudo: Aceitemo-nos quebrados, fracos, sujos e falhos. Não precisamos de mais homens supostamente fortes. Não precisamos de tantas certezas. Não precisamos que nos ensinem tantas verdades.

Without you I was broken, but I'd rather be broken down with you by my side
Broken - Jack Jhonson

5.7.10

Prazer, ******



Já fui chamado de incompreensível, de herege e de arrogante.
Já me acharam um completo idiota, e alguns acabaram confirmando a teoria na prática.
Pensaram que eu fosse infantil, no bom e no mal sentido. Me deram colo, e me mandaram crescer.
Fui confundido com um "alternativo-do-contra", por causa das minhas opiniões. Alguns pensaram que eu fazia assim para chamar atenção, outros me seguiram esperando encontrar em mim um iconoclasta maluco disposto a bombardear alguma catedral religiosa. Se frustraram.
Tem gente que acha que eu sou crente, tem gente que me vê como um "perdido". Tenho discursos liberalistas e conservadores. Sou esquerda e direita. Gosto da tristeza e da alegria.
Gosto de Beirut, de ska, forró universitário, de gospel, Coldplay, MPB, indie, batuques, Los Hermanos e Teatro Mágico.
Falaram que eu deveria deixar de ser melancólico, porque depressão não é coisa de Deus. Me mandaramm calar a boca, porque eu estava histérico. Pensaram que eu era bipolar, mas me taxaram como sadio, no fim das contas.
Não odeio ninguém, mas odeio quem odeia quem não odeia ninguém.
Me chamaram de nerd, e então, de hype. Me deram um skate e um patins. Me convidaram pra jogar bola, e descobriram que eu não gosto de futebol, mesmo sendo corinthiano. Pensaram que eu era sedentário, e então descobriram que caminho 8km todo dia.
Queriam me expulsar da escola por ser maloqueiro. E tudo que eu fazia na sala de aula era chorar pra me defender de humilhações. Um proeminente rico me chamou de retardado, mesmo que tudo que eu fazia era conversar com um computador com preguiça de funcionar em meu pobre, pobre canto.
Pensam que eu sou poeta ou cronista, mas só escrevo pra me divertir. Me acham engraçado, mas não sou humorista (e alguns, nem engraçado me acham, e muito menos poeta).
Não faço questão de parecer algo, de ser diferente, de tentar convencer um grupo, de chamar atenção ou de provar o que acabei de dizer.
Consigo ver Jesus em Nietzsche, Chaplin, Saramago e Freud.
Não sorrio para parecer simpático, nem agrido com minha sinceridade.
Não levanto a mão para bater, nem dou minha cara a tapa.
Eu existo, não subsisto em conceitos caducos e rótulos tangenciáveis.
Eu não sou tão simples quanto você imagina;
Nem tão complexo como você me acusa.
Sou só um homem em construção.
Muito prazer em te conhecer.
Ou não.

2.7.10

Nossas pequenas ditaduras


Existia uma bola engraçada pendurada na frente de um pano de fundo de estrelas.
Nessa bola moravam pessoas, que eram presas pelos pés de alguma forma igualmente engraçada. E elas se odiavam.
Quando eu digo ódio, quero dizer ódio mesmo. Daquele tipo que você usa coisas que cortam, coisas que atiram, coisas que trituram e coisas que esmagam no outro.
Elas assim faziam porque estavam em busca de um item raro e muito cobiçado, um artefato mágico de poderes incríveis, que tornaria a pessoa que o possuísse quase um deus adorado por toda a extensão daquela bola desengonçada e pequena, em comparação ao resto do universo: a grande, maravilhosa e complexa Toda a Verdade.
Eles matavam uns aos outros, afim de se tornar esse que segundo as grandes profecias locais se chamaria "O Portador de Toda a Verdade" (atitude que, se você parar pra pensar, é bem ilógica).
E no meio de grandes guerras, surgiram pequenos e estúpidos líderes. O fato deles se acharem grandes e sábios será totalmente ignorado por esse que vos escreve.
O primeiro foi um sujeito grande, musculoso e peludo, que usava na cabeça um chapéu com chifres de antílopes. Ele assim fazia porque dizia que se tornava temível diante dos seus inimigos, todos fracotes. Ele dizia que Toda a Verdade se escondia dentro do crânio mais duro do mais bravo touro do mais hostil país. Então com sua força, machados (e pelos) invadia aldeias, saqueava, estuprava, brincava de amarelinha e esquartejava, buscando se tornar O Portador de Toda a Verdade. Seu reino foi temível, e rejeitava todos que não portavam armas (ou que não tinham pelos), por dizer que tais homens fracos nem mereciam ter nascido. "O verdadeiro valor de um homem", dizia, "está em seus músculos".
Acabou morrendo engasgado com um osso de galinha.
O segundo, conforme a crença corrente, não nasceu de parto normal. Foi chocado dentro de um ovo de ouro, num ninho de papéis retangulares verdes. Quando era apenas uma pequena cobra, quer dizer, criança, fora alimentado com moedas, e chegou à idade adulta como um saudável presidente de uma empresa multi-nacional. Seu papai que a fundara.
E se havia uma coisa que esse cobra, quer dizer, homem, acreditava, era que o dinheiro comprava tudo. Inclusive Toda a Verdade. Por isso mesmo resolveu escravizar todos os outros homens, não só para que ninguém, exceto ele, atingisse a quantia necessária pra comprar o artefato, mas também porque odiava quem não tinha tanto dinheiro quanto ele mesmo (isso é, todo os outros). Dizia que "somente quem não é vagabundo prospera".
Morreu engasgado pelo próprio veneno. Literalmente. É que mordeu a língua.
A terceira, a bela, diziam que foi uma escultura dos deuses, dada de presente para viver entre os mortais. Tinha olhos de cristais, um nariz arrebitado que meu deus! Quando sorria todos os 32 dentes de marfim claro pareciam teclas de piano, e acreditava que Toda a Verdade se escondia num estojo de maquiagens igualmente divino.
Essa não precisou fazer força para subir ao poder. Foi galgando lentamente as escadas do sucesso, com suas pernas bonitas. Odiava os feios, tanto que decretou uma lei em que a feiura, fosse de nascença, de doença ou de escolha própria, seria punível com exclusão de direitos básicos, como o direito pelo casamento, de desfilar em palcos de moda ou ser feliz. "Todos os feios são também preguiçosos, burros e ignorantes", falava enquanto sorria, tolerantemente.
Felizmente, a musa morreu ainda jovem, porque como ela mesmo dizia, poderia suportar tudo, menos verrugas.
O quarto era um sorridente palhaço que resolveu sair de seu circo após um traumatizante acidente com a jaula de felinos, duas crianças, um trapezista, um ioiô flamejante e 32 tortas de limão. Tomou o mundo como seu picadeiro. As pessoas aplaudiam o gênio do humor e da felicidade. E ele, se dizendo portador da bondade, dizia: "Todos podem ser felizes!" e logo, gritava "Todos devem ser felizes!" e ao ver que o ouviam, continuava "Porque aquele que não é feliz só quer atenção! A felicidade está ao alcance de quem quiser!".
Na verdade, ele achava que Toda a Verdade se materializaria quando todo mundo desse uma alta gargalhada, em uníssono, por alguma piada sem sentido. E de tanto contar piadas sem sentido o colocaram na política. Sua primeira decisão foi pintar todos os depressivos, infelizes e melancólicos da cidade de rosa, para que passeassem pelados na praça central, como uma grande piada que eram.
Morreu de um ataque de riso, seguido de um ataque cardíaco.
Então todos os feios, fracos, pobres, velhos, tristes, angustiados e desanimados se reuniram, excluídos, em uma comunidade afastada. Dividiam o que tinham, partilhavam suas dores e tentavam se aturar em suas diferenças. No meio desse povo nasceu Toda a Verdade, que no final das contas era uma pessoa. E Toda a Verdade foi seu líder, o primeiro homem bom que aquele planeta engraçado pendurado num universo de estrelas pálidas viu em toda sua existência.
Mas ninguém poderia tê-lo. Só imitá-lo.

29.6.10

Rápida biografia

Ao nascer, Luiz pensava ser um pepino.
Quando bebê, fingia poder voar.
Cresceu achando que era um pirata.
Na adolescência, namorou a Esfinge.
Se formou com louvor em topografia marciana.
Enriqueceu trabalhando num circo de fadas.
Envelheceu comendo manjares de reis mortos.
Um pouco antes de tudo acabar, reformulou sua vida. Ele disse:
"Antes ter provado de uma só certeza, de um só sabor real, de uma só alegria verdadeira, do que tantos paladares maravilhosos, de cores incriveis e histórias gloriosas de coisas que nunca existiram"
Morreu sobre sua cama, a qual chamava de trono.
E foi escondido na terra, que nunca havia fantasiado nada.

27.6.10

coisas maravilhosas em trechos de improviso

Minha pergunta:
Uma criança pede dinheiro no farol. Ao longe, você vê o pai dela observando, enquanto ela arrecada o dinheiro. O que você pensa disso?

A resposta dela:
Vejo o quanto meus problemas são pequenos perto dos dos outros. Que é utopia uma sociedade justa. Que o homem é egoísta, cruel e insaciável. Mas que Deus não, e nele nada é impossível.
Penso que dando o dinheiro eu contribuiria para que aquela situação se perpetue, mas se não der, posso estar colocando aquela criança em maus bocados.
Penso em tanta coisa. Meus olhos não suportam miséria e violência. E numa cena como essa presenciamos as duas situações. Mas o que são meus olhos, meu horror pela causa, perto do que aquela criança sente na pele? Penso que sou pequena, e o mundo é muito maior do que os meus braços podem carregar.

Trecho de uma conversa quase onírica com um personagem maravilhoso que surgiu no palco da minha vida. Não sei que papel ele vai ter no decorrer da história, mas esse trecho do espetáculo está me causando arrepios.

25.6.10

You could be happy

Hoje eu queria falar sobre ser feliz.
Mas não da forma que todo mundo fala, de como a alegria é complexa e "todo ser humano procura suprir essa necessidade através de grana, plástica, espiritualidade, sucesso profissional, relacionamentos, lazer, reclusão, arte..."
Queria falar de ser feliz.
De abrir a janela e deixar o sol bater nesse quarto frio.
De sorrir enquanto lava a louça.
De falar sozinho.
De rir das próprias desgraças.
De ser simpático num comentário que foi enviado para você no twitter, mesmo sendo você uma pessoa famosinha que acha que todo mundo que envia recados está tentando te zuar.
De ser suave.
Estou falando de levantar da cama, encher o peito, e falar: Hoje vou me alegrar!

O que te impede?
Nada, não é?

O que te impede de perdoar, de deixar as pessoas entrarem e saírem da sua vida, como se fosse uma casa aberta?
O que te impede de ser uma hospedagem para feridos de guerra, em vez de uma propriedade privada?

Ao olhar pro lado, o que faz com que você veja um obstáculo em vez de uma pessoa?

O que te impede de se apaixonar?
De deixar que alguém te vença?
De se deixar derrubar?
O que te impede de tentar novamente, e aceitar seus erros com um sorriso?
O que te impede de dizer: "Sim, a culpa é minha"?

O mundo está muito complicado.
Dizem que a felicidade é muito importante e muito rara para ficar disponível o tempo todo, para todo mundo. Ela é muito grande, muito esquisita, muito complexa. Para protegê-la, colocamos trincas, ferrolhos e cadeados, e a cercamos de muros e valas. E então ficamos seguros, afastando todo mundo de perto.

Só que cada pessoa com que cruzamos tem uma chave. Cada uma é uma escada. Todas elas são pontes.

22.6.10

Comunidade articulada do quarto azul celeste

Um homem ensinou para seus bonecos articulados como é legal que todos vivam em paz e em liberdade. E então, sumiu por um tempo, prometendo voltar em breve.
Falcon do G. I. Joe, valentão, assumiu a liderança. Falou que precisariam de alguém com pulso firme para levar adiante as palavras do dono. E, de preferência, que usasse uma barba cerrada, pois barbas cerradas impõem respeito. Começou a transformar sugestões em regras, as regras em rituais, e de repente, todos que não praticassem a paz da forma que ele achava correta eram acusados de insubordinação, e eram afastados da comunidade articulada do quarto azul celeste.


Spider Man achou um absurdo. Ele gostava de se pendurar em maquetes de arranha-céus, beijar sua Mary Jane Watson articulada em noites de chuva de ponta cabeça, e Falcon dizia que isso ía totalmente contra os padrões de paz. Quem dirá então jogar teia de aranha no rosto dos bandidos da cidade de blocos montáveis! Definitivamnte era contra essa idéia maluca, e então se uniu com todos aqueles bonecos Playmobil indies com cabelo de tigela e calças coloridas, e tentou seguir as palavras do dono de sua própria forma. Eles tocavam numa banda de rock, e Falcon dizia que isso era coisa de pouca paz, provavelmente idéia provinda da cabeça do Spawn, aquele demônio com simbionte e fedendo a enxofre.
O Spawn achava graça, na verdade. Ficava lá sentado em seu trono, sem mover um dedo sequer.
Ken, aquele esposo da Barbie, mauricinho, com sua blusa de trico amarrada num nó em volta do pescoço, também não gostava do método de Falcon. Chamou todos ao redor de seu carro de plástico cópia exata - mas nem tanto - de um Porsche, e falou em alta voz, para que todos ouvissem: "O dono não nos quer tristes, isso é verdade! Liberdade é prazer! Portanto, consigamos tudo o que quisermos, e se possível, me dê parte disso também, porque tenho certeza que como sou do dono um dos brinquedos favoritos, vocês serão recompensados pela generosidade!". Dessa forma, comprou para sua eterna namorada-esposa-ex-esposa-grávida Barbie um salão de cabelereiros, milhares de roupas, um rabo de sereia que brilha quando molhado em água fria, chapinha pra fazer frizo no cabelo, uma mansão, cachorrinho e até mais um filho, de plástico.
Spider Man achava isso desprezível. Talvez porque via que aquelas cópias chinesas de super-heróis da TV, produtos de categoria inferior, o invejavam e doavam até o que não tinham para que fossem parecidos com Ken, dirigindo um Porsche e namorando uma verdadeira boneca. Mais provavelmente, odiava porque também invejava, mas nem reparava nesse detalhe.
Enquanto isso, um dos bonecos playmobil tivera o que julgara ser uma revelação de que deveriam tocar de costas para quem ouvisse, porque como gostavam de agradar seu dono, não deveriam agradar a mais ninguém. Os outros não entenderam muita lógica nessa colocação, e continuaram tocando seu rock, que de birra ficara ainda mais pesado. Começaram a beber, falar palavrões e odiar Boça Nova para mostrar o quanto eram diferentes de seu parente-próximo maluco.
Foi quando se levantou no meio de todos o boneco Gandalf, o cinzento, erguendo bem alto o bastão e gritando: "A única forma de nosso dono voltar é que estejamos unidos!". E tentou mostrar para todos que agindo assim, contribuiriam para a paz. E para a liberdade. Frodo achou aquilo uma bobagem, e foi discutir com Sam novas maneiras de assar batatas.
Todos os outros, no entanto, compraram a idéia. Cada um pensava que entendia a forma perfeita de procurar a paz, e dessa forma, obrigava quem estava próximo a seguir o que faziam. O próximo em questão, além de não ceder, procurava provar que estava certo de sua maneira. Seguiu-se disso uma paz forçada, onde se via Super Man apertando a mão e dando sorrisos amarelos para Naruto, Max Steel tolerando as conversas de Mu de Áries (que ele considerava uma criatura extremamente afetada) e até mesmo o Senhor Cabeça de Batata tentava compreender toda aquela complexidade de Garage Kit de L Lawliet.
A história torna-se dramática a partir desse ponto, mas vou resumí-la: Vendo a bagunça que seus bonecos faziam com o que compreendiam ser "paz" e "liberdade", o dono resolveu voltar e colocar tudo em seu lugar. Desinstitucionalizou as coisas que Falcon tinha administrado com tanto rigor e burocracia; falou para a banda que a música era música, e para ser música basta ser tocada, se gostarem de rock n' roll ou boça nova, quiserem tocar de frente ou de costas, isso era questão de opinião delas, e ele não tinha nada a ver com isso; puxou a orelha do invejoso Peter Park, apesar de dar mó força com seu namoro de ponta-cabeça na chuva; provou para todos que o carro, o penteado, a namorada, o cachorro, a cômoda, a mansão, a piscina, a cama redonda e até o bebê de Ken eram de plástico; e por fim, riu por muito tempo e em alto som sobre aquela idéia ridícula de Gandalf de "união entre brinquedos".
"Tal coisa não existe". Disse. "Para que todos pensem igual, é mais fácil só sobrar um, quebrando todos os outros. A paz e a liberdade não são coisas que se institucionalizem, que se discutam, que se estruturem, ou que se prendam. Por quê, ao invés de tentarem provar que suas idéias estavam certas, vocês não procuraram viver juntos, simplesmente assim?"
Então pegou uma folha de aluminio e foi assar batatas junto com Frodo e Sam, frustrando meio batalhão de anjos articulados que estavam prestes a cantar coisas sobre santidade.

20.6.10

Não existem bandidos. Não existem mocinhos.

Acabei de assistir Unthinkable. Um filme sem patrocínio, sem produtora, sem uma direção brilhante, sem lobby, sem glamour, sem Oscar. Sem porcaria nenhuma.
Por falta de investimento financeiro, foi lançado para apenas 4 países. Para quem é atento em detalhes, fica claro, em diversos trechos do filme, que muita coisa foi cortada da edição final; e talvez seja pelo mesmo motivo.
É um filme visceral, cru, beirando a prepotência de se garantir como único verdadeiro no que se propõe a falar, e expõe exatamente o que não queremos ver.
Sequer estreou no Brasil.
E é, sem dúvidas, um dos melhores suspenses policiais que já assistí.


Site do Up! para download.


A pergunta que fica, pesando na mente de tal forma que parece descer até o estômago de maneira bem desconfortável, é: "até onde você consegue negociar com seus princípios?"
Estou pensando que todos nós nos protegemos alimentando monstros. Precisamos deles para fazer nosso trabalho sujo, para não enlouquecermos. Precisamos de nossos monstros para proteger o sistema de vida que criamos. Para proteger "nosso governo", o próprio, e o público. Se algo nos parece hostil ou perigoso, abrimos a jaula, e quando nossos supostos inimigos são despedaçados, culpamos o monstro por isso.
Afinal, somos tão limpos, bem-vestidos e perfumados.
Somos a sociedade ocidental americana.
Sorria e pouse para a foto, baby. Deixe que o monstro que criamos leve a culpa.

Spoiler:
Quando comentei que achava que tudo poderia ser facilmente resolvido se o governo cedesse para o pedido prático (mesmo que não simples) de Yusef, fui chamado de louco. Falaram que o correto seria levar duas crianças à tortura. "Pelo bem de milhares".
Yusef provou para todos que ouviram que ele estava certo, não existem mocinhos. O filme me provou a mesma coisa, assim que eu desliguei a TV.

19.6.10

Cantamos quando não podemos.

Sentado num banquinho no topo de um barranco eu olhava para um bairro miserável de uma cidade pobre de um país "emergente". Crianças empinavam pipa nas lajes. Galinhas ciscavam no terreno inclinado. Minha amiga conversava com seu Francisco, o dono da casa humilde com curiosa paisagem, cujo único acesso para o que a gente chamaria de porta principal é nada mais que um corredor de um metro de largura, beirado por casa e pelo vazio do galinheiro, a 20 metros abaixo de onde estávamos.
Do fundo do terreno, uma galinha muito feia veio escalando com dificuldade. Parou em nossa frente e começou a se comportar de maneira esquisita. Primeiro pensei que estava engasgando, o que achei curioso. Ela abria o bico como se fosse bocejar. Mas então ví as penas do pescoço ouriçarem, e entendí. Ela estava tentando cantar, como se fosse um galo. Mas sem som. O pássaro horrível e imundo com olhar triste estava lá na minha frente, tentando fazer o que a natureza determinara como impossível para sua estrutura biológica.


- Eu posso ter perdido tudo, mas ganhei o melhor desse mundo. Minha filha está viva. Ela nasceu duas vezes. - Dizia seu Francisco, que agora morava nessa casa emprestada porque perdera tudo o que tinha em um deslizamento recente, quando sua filha mais nova foi resgatada em cima da hora de um destino pior.
Minha amiga está tentando desfazer o que a natureza, agredida pelos homens, reagiu com vingança contra a família de imigrantes nordestinos. Ela está tentando organizar a reconstrução de sua antiga casa.
- Amo muito meus filhos, nunca vou abandoná-los. Fiquei sabendo de um compadre meu que o filho admitiu ser viado, e ele botou o próprio filho para fora de casa. Eu nunca conseguiria fazer isso, vou amar meus filhos até o fim.
Ele estava com a voz embargada, mas não chorava. Mantinha a pose, sentado, sujo, em um banquinho parecido com o meu. Analfabeto, trabalhando como gari e pedreiro para sustentar os 4 membros de sua família. O seu salário só pode ser comparado com algo muito, muito pequeno.
A galinha continuava tentando cantar. Suja e feia, lutando para escalar o barranco gigantesco.
Eu, calado, lutava para entender a dimensão dessa dor. Sujo pela terra batida e seca do calor do local, respirando com dificuldade por culpa de uma queimada próxima, olhava aquele mundo de miséria inculta e descaso. Olhava para a guerra daquele homem pela própria dignidade, mesmo cercado de histórias em que homens desistiram de seus valores, de seus amores e seus tesouros.
Então entendí que somos como aquela galinha: Escancarando bem aberta nossa alma, esperamos pelo milagre de superar nossos barrancos, para cantarmos quando tudo diz que não podemos. Nossa sujeira, nossa feiura, todas nossas impossibilidades são colocadas em cheque por nossa fé ilógica.
E quatro almas imundas cantaram em silêncio, nessa tarde:
Minha mente obscura de tanto ódios, comovida com a simplicidade de um analfabeto amoroso;
a minha amiga, sabendo que algo pode ser feito em favor de quem precisa.
Senhor Francisco, ao reafirmar em plenos pulmões que nada tirará seus verdadeiros tesouros.
E a galinha, cantando inspirada por Deus para me fazer pensar.

2.1.10

Sou um ranzinza



Eu não aguento novela das oito. Se eu fosse listar, daria uns cento e vinte motivos; mas dá pra resumir que não aguento todo dia ver o drama de uma aleijada durante uma hora na minha TV. Ver a aleijada tomar banho, ver a aleijada chorar porque não queria ir na festa de natal, ver a aleijada rir com uma piada estúpida que, provavelmente, se ela ainda usasse as pernas, não riria. Não aguento a mocinha que pula a cerca e a vilã que é mais sincera que 300 terapeutas juntos. No final, a mocinha finalmente casa com o parceiro que o povo mais aprovou (já que o escritor não manda no próprio enredo), a vilã morre num acidente de carro, alguém dá um tiro em outro alguém, e bebês nascem em sequência, como se os personagens combinassem um período de procriação.
Não aguento festas de Reveillon. Não aguento ver aquelas mesmas pessoas que são intolerantes, amargas, que te desprezam o ano todo, te desejando paz, amor e luz. Alguém pode, pelo amor de meu bom Deus, me explicar o que desejar LUZ significa? A pessoa pretende que eu vire uma criatura fosforecente, por acaso? Contaminação radioativa?!
Eu não aguento pessoas. Pessoas são o que existem de mais complexo, mentiroso, sem limites para injustiça, no termo mais exato da palavra. Não estou falando de leis, estou falando de justiça da balança. Todos pendem para sí, não conseguem imaginar a extremidade de lá, também com seu peso de deveres e direitos. Todos vivem no "I, me, mine", como diria George Harrison. Todos com tantas respostas, com tantas certezas. Adoram tantos deuses surdos e cegos, adoram a sí mesmos, e se chamam de Jesus, o Cristo, de vez em quando.
Eu admirava um rapaz que toca músicas cristãs. Quando fiz um comentário para ele sobre um filme que havia assistido, me interpretou mal, e respondeu atravessado. Alguns amigos me advertiram que minha forma de brincar foi errada, porque deu múltiplas interpretações. Mas eu pergunto: Porque ele esperava o pior de mim, sendo que não me conhecia? Quando respondi, justificando a minha inocência no assunto, ele não respondeu mais. Engraçado. A gente só se envolve quando a questão é negativa. Não precisamos de amigos, só de inimigos. É isso o que nossa atitude diz.
Mas no Reveillon sorrimos, e usamos branco.
Não aguento realities shows. O que é a realidade?
Não aguento pessoas politicamente corretas. Todos tem seus preconceitos, taras e medos.
Não aguento frases feitas.
Não aguento comerciais de banco.
Não aguento patriotas de Copa do Mundo.
Não aguento música popular.
Não aguento mureteiros.
Não aguento não aguentar.
E se for parar pra pensar, eu sou o culpado desse mesmo pecado. Porque ser ranzinza é negar a graça, não aceitar amor gratuito, buscar pesos e medidas para se desculpar. É negar a própria justiça, como comentei.
Sim, sou alvo e vítima de meu próprio mau-humor.
No final, não aguento a mim mesmo.