19.6.10

Cantamos quando não podemos.

Sentado num banquinho no topo de um barranco eu olhava para um bairro miserável de uma cidade pobre de um país "emergente". Crianças empinavam pipa nas lajes. Galinhas ciscavam no terreno inclinado. Minha amiga conversava com seu Francisco, o dono da casa humilde com curiosa paisagem, cujo único acesso para o que a gente chamaria de porta principal é nada mais que um corredor de um metro de largura, beirado por casa e pelo vazio do galinheiro, a 20 metros abaixo de onde estávamos.
Do fundo do terreno, uma galinha muito feia veio escalando com dificuldade. Parou em nossa frente e começou a se comportar de maneira esquisita. Primeiro pensei que estava engasgando, o que achei curioso. Ela abria o bico como se fosse bocejar. Mas então ví as penas do pescoço ouriçarem, e entendí. Ela estava tentando cantar, como se fosse um galo. Mas sem som. O pássaro horrível e imundo com olhar triste estava lá na minha frente, tentando fazer o que a natureza determinara como impossível para sua estrutura biológica.


- Eu posso ter perdido tudo, mas ganhei o melhor desse mundo. Minha filha está viva. Ela nasceu duas vezes. - Dizia seu Francisco, que agora morava nessa casa emprestada porque perdera tudo o que tinha em um deslizamento recente, quando sua filha mais nova foi resgatada em cima da hora de um destino pior.
Minha amiga está tentando desfazer o que a natureza, agredida pelos homens, reagiu com vingança contra a família de imigrantes nordestinos. Ela está tentando organizar a reconstrução de sua antiga casa.
- Amo muito meus filhos, nunca vou abandoná-los. Fiquei sabendo de um compadre meu que o filho admitiu ser viado, e ele botou o próprio filho para fora de casa. Eu nunca conseguiria fazer isso, vou amar meus filhos até o fim.
Ele estava com a voz embargada, mas não chorava. Mantinha a pose, sentado, sujo, em um banquinho parecido com o meu. Analfabeto, trabalhando como gari e pedreiro para sustentar os 4 membros de sua família. O seu salário só pode ser comparado com algo muito, muito pequeno.
A galinha continuava tentando cantar. Suja e feia, lutando para escalar o barranco gigantesco.
Eu, calado, lutava para entender a dimensão dessa dor. Sujo pela terra batida e seca do calor do local, respirando com dificuldade por culpa de uma queimada próxima, olhava aquele mundo de miséria inculta e descaso. Olhava para a guerra daquele homem pela própria dignidade, mesmo cercado de histórias em que homens desistiram de seus valores, de seus amores e seus tesouros.
Então entendí que somos como aquela galinha: Escancarando bem aberta nossa alma, esperamos pelo milagre de superar nossos barrancos, para cantarmos quando tudo diz que não podemos. Nossa sujeira, nossa feiura, todas nossas impossibilidades são colocadas em cheque por nossa fé ilógica.
E quatro almas imundas cantaram em silêncio, nessa tarde:
Minha mente obscura de tanto ódios, comovida com a simplicidade de um analfabeto amoroso;
a minha amiga, sabendo que algo pode ser feito em favor de quem precisa.
Senhor Francisco, ao reafirmar em plenos pulmões que nada tirará seus verdadeiros tesouros.
E a galinha, cantando inspirada por Deus para me fazer pensar.

2 comentários:

  1. Thi, que texto mais lindoooooooooo!!!

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  2. Meu não me faz chorar cara!
    nossa, nossa..... puxa é pura verdade!
    valeu esse texto me ajudou a refletir sobre minha fé e também que aquilo de importância na minha vida eu não perdi, pois ainda está comigo do meu lado.

    Até sempre...falou!

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