27.8.10

Coisas pequenas. Coisas simples.

Quando eu viajei para aqui do lado, foi o que me chamou a atenção. Eram só 600km, quase uma reta, e eu estava lá, no topo do Morro do Borel, no Rio de Janeiro.
Depois de dois dias de discussões e pressões de como haveria de ser feito um evangelismo intencional, de desfiles de maquinário militar na posse de traficantes em motos, de ensaios exaustivos de peças sistemáticas de pantomimas quase entediantes, de agitação popular pela suposta morte do gerente da boca, de julgamento e análise de caráter dos dois lados da trincheira da salvação, o caveirão subiu, metendo bala em meliantes e o que tivesse o azar de estar na frente, salvo ou não. De forma que as pessoas agiram como num estouro de manada. Correria, pânico, histeria. Invocou-se o nome de Deus e outros tantos chulos, e todos se esconderam em lugares supostamente seguros enquanto os tiros cortavam o ar.
Mas nenhum desses eventos me impressionou. Talvez porque a gente viva numa realidade muito violenta, você sugira, e eu tendo a concordar. Mesmo não sabendo o motivo concreto disso, não fiquei apavorado como a maioria das pessoas, orando por Deus fervorosamente contra um fim tão trágico como o de ser atravessado por tiros de fuzil. Na verdade, de uma certa forma, eu até achei engraçado. Nada que não tenha visto anteriormente em algum filme de ação, eu diria.
Fiquei impressionado, aí é verdade, no dia seguinte. Depois de muitas piadas sobre o comportamento deplorável de uns e de outros diante do poder bélico da Tropa de Elite carioca, pusemos em prática o plano de escalada do morro, passando por quadras, vielas, ruas serpenteantes que entravam como túneis embaixo de casas, naquela típica paisagem de escadas de lajes contra o céu azul da Guanabara. E foi quando encontrei, no meio da caminhada, uma bola de gude a alguns centímetros de uma cápsula deflagrada de 9 mm. Esse símbolo foi mais forte que qualquer explosão, flash de luz ou tiro. Gritou mais alto que qualquer pregador de rua com uma bíblia na mão e algumas veias saltando no pescoço. Correu mais rápido que o sangue escorrendo em laje batida ou dentro de viatura de polícia. Até hoje os guardo como espólios de guerra, como uma mensagem que não posso esquecer: A bola de gude e a cápsula.
Assim é tudo que é pequeno e simples. Uma lasca de pedra, uma marca de perfume, uma referência gramatical. Qualquer informação perdida nesse mundo de símbolos é muito mais poderosa que milhares de palavras e promessas enfáticas.
Pergunte ao apaixonado, se de todas as coisas mais marcantes na memória não estão as mais simples: a cor dos olhos ou o barulho que o ser amado faz quando rí.
Pergunte a quem está de luto se a memória mais dolorida não é exatamente aquela que é menor dentre todas: o apelido secreto, o dia em que perdeu as chaves na privada, a maneira que enxugava a mão na roupa.

Giro um pedaço pequendo de mármore na mão e sorrio. Não deve ter mais de dez gramas, é branco, irregular e sem marcas, e é uma lembrança de um dia que matei aula para ouvir piadas e histórias dentro de uma cafeteria. Absolutamente rotineiro. Gigantesco, único e maravilhoso pedaço de mármore. Mais poderoso que uma história, mais real que uma fotografia, mais completo do que qualquer palavra a respeito.

Um comentário:

  1. Manolo!
    Mais um texto perfeito.
    Me fez refletir... é verdade coisas pequenas e simples marcam nossa história.
    Abraços.

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