1.8.10

Prática e teoria


Eu tenho um sério problema com "igrejas".
E para complicar, participo de duas. Com doutrinas completamente diferentes.
Recentemente um dos pastores entoou uma crítica direta à linha teológica da outra igreja que frequento, em um sermão que elogiava e justificava a "instituição igreja", e toda organização administrativa que ele julga necessária para subsistência da mesma.
Tudo pura teoria.
Nesse dia, havia chegado cedo, e estava em meu canto com O Nome do Vento aberto, absorto na leitura, quando um "membro" da "igreja" me abordou, com todo aquele carinho sistemático misturado com uma ironia santarrona, que crentes são tão bons em entoar:
- Ei, irmão! A quanto tempo! Eu estava com saudade! Porque você anda sumido? - Falou, enquanto pousava a mão no meu ombro.
O pior é que essa figura nem da minha "igreja" era. Eu o ví uma vez, se tanto, num passeio que fiz com amigos, e se não fui hostil com esse cara desde que nos conhecemos é porque tive uma ótima educação por parte de meus pais. Mas deixo aqui registrado que para mim ele é um tremendo babaca intolerante, ignorante e arrogante que sempre acha que está certo, que nunca desmonta da pose de superioridade e santidade.
Odeio gente assim. Sim, odeio, porque sou humano, e até que o Espírito Santo concerte esse meu sentimento em relação a ele, será assim que eu me sentirei.
Engolindo minha vontade de dar uma resposta engraçadinha para rebater a ironia, só respondi:
- Eu não sumo. Não tenho esses poderes. Quem quer me achar, me acha. - Sorrí e me ajeitei na cadeira, para tentar deixar claro que ele não tinha a permissão de me tocar.
- Ah, mas a gente sente sua falta! Sabe que eu te amo, né?

Amor.

Está aí a defesa da maior parte dos pregadores do "ir à igreja é agradar a Deus". Dizem que as comunidades são antros de amor, onde nos servimos mutualmente, em comunhão. Na prática, a teoria é outra, como diria meu avô.
Olhei nos olhos do rapaz e disse:
- Relaxa, velho. Eu estou bem. - O que eu queria mesmo era acabar com o assunto hipócrita e infinitamente intrometido. Eu nunca dei a oportunidade para aquele cara opinar na minha vida, e não daria agora.
Sorrí e comprimentei o outro rapaz que o acompanhava. Por esse sim eu nutria alguma simpatia. Ele retribuiu o sorriso e comprimento, e por fim me deixaram em paz para terminar de ler. Não antes de tentar me tirar do meu lugar, afim de me arrastar junto para fazer alguma dessas coisas tremendamente chatas que pessoas como ele costumam fazer.
Naquela noite, durante o culto, pesei o que o pregador dizia. Apesar de todos meus defeitos, sei que nem sempre estou certo, e é bem verdade que muitos dos meus traumas vieram de feridas. E muitas, por minha responsabilidade, também. Quando ele bateu o martelo e pediu para que viesse à frente quem já se viu ferido por homens, e por isso sente dificuldade de "participar" da "vida de uma igreja", eu fui. Porque é assim que eu sou. Ele, pessoalmente, orou por mim, mas, obviamente, uma oração não foi o suficiente para responder todas as minhas perguntas. Orações raramente respondem perguntas. Tanto que o procurei no fim do culto, perguntando se ele tinha um tempo para conversar comigo durante a semana. Deixei aberto para ele o dia e a hora, que me garantiu estar totalmente livre, mas que ligaria sem falta para marcar.
Passou-se duas semanas, e ainda estou esperando.
Sexta eu participei de um culto de envio de dois amigos próximos para Guiné-Bissau. Eles ficarão lá por um ano, em missão, no meio de um povo onde o evangelho não é bem aceito. Esse tipo de coisa extrema me faz lembrar que a igreja, na prática, ainda está viva (note que dessa vez não usei as aspas). Lá encontrei o mesmo rapaz que eu falei agora a pouco, me abraçando, me chamando de amigo e perguntando onde eu estava no fim de semana passado. Ele não sabe meu sobrenome, não conhece o nome da minha mãe, nunca comeu comigo na mesma mesa, nem sabe que tipo de comida eu prefiro. Ele nunca me viu chorar, não sabe no que trabalho, nem quanto eu tenho no banco. Não ficou irritado comigo quando começo a ficar chato dessa maneira que só eu sei ficar, nem riu comigo de minhas piadas histéricas. Nunca me viu beber demais, nem xingar os malditos burgueses capitalistas. Ele nunca me viu escrever, nem sabe se eu gosto de poesia ou de videogame. Ele só me viu uma vez na vida, mas se julga no direito de exigir:
- Quero te ver aqui domingo, heim?
Ao sair da despedida, fiz uma coisa totalmente nova:
Fui para uma balada.
Eu crescí como uma criança cheia de traumas e medos. Minha adolescência se desenvolveu mergulhada em videogames e sites da internet; de forma que nunca fiz as besteiras que todo mundo faz, coisas que são tão severamente agredidas pela "instituição igreja". Mas se eu for sincero, direi que na verdade nunca arrisquei. Nunca ousei. Nunca fui além do que me permitiram. Além do "puro e verdadeiro". Isso não se deve à minha devoção à verdade bíblica ou um sentimento sincero dessa coisa que todo mundo chama de "santidade". Eu simplesmente sou assim. Travado.
Na Augusta, encontrei duas pessoas admiráveis. Eles sabem beber, falar palavrão, fazer piada um com o outro, rir e dançar - ou não dançar - sem preocupação. Nos divertimos a cada momento: A cada vez que um deles fingia tão dramaticamente que se aproximaria de alguma garota que dançava na pista, cujo plano não saía da intenção. Em cada vez que alguém dizia uma besteira enorme. Em cada vez que nos permitíamos ser humanos, falhos, e nos divertir com isso. Nessa balada, encontrei Deus me ensinando sobre a graça dEle mesmo no meio de uma batida eletrônica.
Lembrei que uma vez me disseram que a música eletrônica é cheia de mantras, que o diabo usa para atingir uma disposição mental nos jovens a ponto de faze-los manipuláveis, e rí alto. Na prática, quem manipula mentalmente é a própria "instituição igreja". E com meios muito mais subversivos.
No meio da balada, ví minha verdadeira igreja: Algumas almas quebradas se divertindo de verdade, pulando e dançando músicas seculares. Nos reunimos em volta de um bolo de aniversário, e cantamos parabéns. Ganhei um pedaço, sem conhecer muito bem o aniversariante. Fui servido por ele, que sorriu para mim. Ninguém me perguntou onde eu estava semana passada, mas perguntaram se me veriam domingo. Não havia sarcarsmo ou cobrança no assunto. Eles realmente só me queriam por perto.
Leve assim.
No meio da balada, descobrí uma verdadeira comunhão. Uma verdadeira igreja. Eu pude falar de medos e traumas, sem ter medo de ser retaliado. Compartilhamos o que sentíamos como irmãos, não como mestres e discípulos, não como pessoas afastadas da verdade que precisam ser doutrinadas. No meio da balada ouve respeito e tolerância. Ouve amor e companheirismo. No meio da balada houve verdadeira sintonia.
Peço perdão para você que prega que isso é herege e errado. O que conheço na prática tem muito mais peso que sua teoria. Em uma "instituição igreja" eu só conhecí lavagem cerebral, hipocrisia, mentira, arrogância, antropocentrismo, intolerância, mesquinhez, preconceito, indisposição para humor, cafonice e ignorância. E medo. Muito medo.
Eu conhecí o medo de errar, medo de falar o que penso, medo de agir como quero, medo de tentar o que desejo, medo de buscar o que preciso, medo de amar a quem gosto, medo de ser quem sou.
Não é à toa que 70% dos jovens que procuram a psicoterapia para tratamento vieram de igrejas cristãs. E a maioria avassaladora, evangélica.
Mas o perfeito amor lança fora todo medo.

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Enquanto eu escrevia esse post, recebí uma ligação. Era alguém para quem não passei meu numero de telefone, que se abalou em ir atrás e descobrir, para poder me ligar e falar comigo. Afinal, "quem quer me achar, me acha".
Ele é dessa igreja de desigrejados, que ama antes de cobrar. Perguntou quando me veria, e o porquê de eu não ter aparecido por lá domingo. Ele não me deu um abraço, nem falou que está com saudade e que me ama. De uma forma engraçada, não me sentí cobrado, mas amado.

São 22h30 da noite.
Até agora, aquele pastor não me ligou, mesmo que pessoalmente eu tenha passado o telefone correto. Um membro deslocado de uma comunidade maluca que frequenta baladas, sim.

Uma é uma "instituição". Outra é um "corpo".

Na prática, a teoria fica muito mais bonita.

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